Zé Olavo Balthazar
Rio de Janeiro / RJ

 

 

Apenas mais um maluco beleza



          


           Descalço e com andrajos de fardas esfarrapadas, o louco seguia em passos lentos pelas ruelas daquele povoado. Parecia desconhecer qualquer ameaça, qualquer retaliação; seguia calado e com os olhos voltados para um horizonte imaginário.
           O sol, causticante, provocou sede. E fazendo jus ao seu direito de louco, pediu água na primeira casa depois da Matriz. Agenor, o sábio do lugar, prontificou-se a saciar-lhe:
           - Tome, bom homem, a água é bênção de Deus! E nenhum homem deve negá-la a qualquer dos seus irmãos. Nem mesmo aos loucos e aos inimigos.
           O louco pegou o copo, bebeu tudo de uma só vez, e pediu mais. Agenor encheu novamente o copo e serviu. O homem bebeu, reservou dois dedos do líquido e despejou-o sobre a cabeça, sacudindo-a acintosamente espargindo chuviscos para todos os lados.
           - Obrigado, homem de Deus! Você me alimentou para as próximas cinco léguas.
           Agenor, naquele momento, percebeu que não se tratava de um louco qualquer. Aquele homem tinha alguma coisa para contar, para falar, alguma coisa para revelar. Resolveu arriscar:
           - Para onde está indo o amigo?
           - Se eu lhe dissesse que estou indo para lugar nenhum, você acreditaria?
           - Sim... mas o amigo referiu-se às próximas cinco léguas... E, já que está indo para oeste... lá fica o antigo cemitério dos escravos... Não existe mais nada por lá além de túmulos degradados. Só ruínas.
           - Ruínas e histórias!
           - Mas lá não encontrará ninguém, a quem irá contá-las?
           O louco voltou novamente os olhos para o horizonte perdido, pediu permissão para sentar-se num tosco e convidativo tronco, à sombra da parede, ao lado da porta. Agenor assentiu. Ele, pela primeira vez sorriu.
           - E quem lhe disse que estou indo ouvir histórias? Eu estou indo para contá-las... contá-las sobre irmãos que em vida não experimentaram nada mais do que a dor da humilhação.
           Agenor pediu-lhe que esperasse por alguns minutos, foi até a cozinha e trouxe pão, um pedaço de charque cozido e farinha.
           - Tome, o senhor também deve estar com fome.
           O louco tomou o pequeno farnel, baixou a cabeça e devorou aquele alimento com o apetite de quem há muito não via comida à sua frente. Agenor, calado, assistia a tudo, e a cada instante sua curiosidade aumentava a respeito daquele louco com farda esfarrapada.
           - O senhor foi militar?
           O louco, pela primeira vez, sorriu:
           - Não, estas roupas eu peguei num lixão, estava com frio... Nunca fui militar, nem seria, sou contra armas e guerras.
           - Contra armas e guerras?...
           - Sim, mas não só contra armas e guerras. Sou contra a demagogia, não só dos políticos mas da sociedade em geral, sou contra a imbecilidade de quem repete conceitos sem questioná-los, sou contra a mediocridade dos arrogantes. Sou contra qualquer ilusão de poder, contra a ganância, contra a burrice que parece tomar conta do mundo.
           - Burrice?
           - Você ouviu bem, burrice! Burrice por achar que alguma coisa, seja ela qual for, vale mais do que a vida de um ser humano. Burrice, sim, sem lógica aceitável. Ganância barata, pobre e inconsequente. Porque só um idiota mata por um bem de consumo, perecível e degradável.
           E levantando-se, com a clara imponência de um louco:
           - Obrigado pela acolhida! Preciso ir em frente para contar minhas histórias. No mundo de cá, as pessoas não estão interessadas em ouvir; querem, sim, ter e acumular, a qualquer custo. E esta é a minha loucura; não aceito isso, e pronto!
           A seguir, três passos adiante, parou e virou-se altivo para Agenor:
           - Me disseste que lá não encontrarei quem me conte histórias e eu lhe disse que eu é quem contaria histórias. Você poderia ter alegado que, por consequência, não haveria também quem me ouvisse. Mas eu lhe digo, bom amigo,
lá falarei às sepulturas, pois é nas sepulturas é que está a verdadeira história da humanidade. Deixarei nelas as minhas verdades.

 


 




Conto publicado no livro: "Casos de amor (e lambanças)"- Edição 2021
Janeiro de 2022

Visitei a Antologia on line da CBJE e estou recomendando a você.
Anote camarabrasileira.com.br/cal21-005.html e recomende aos amigos