Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

O sorriso de Veludo

     

          
      Pronta para pegar sol, bastante protetor uv, deitei numa espreguiçadeira com estofamento macio muito confortável, sentindo como se fosse uma rainha poderosa. A paisagem em frente de montanhas recortadas, que para mim tem uma mensagem escrita ali, tem até pedrinhas nas pontas dos recortes como sinais diacríticos. Toda vez que admiro essas montanhas tento decifrar o que anunciam.  Pássaros cantando, borboletas e o perfume suave exalado pelas flores do Jasmim dos Poetas. 
      Tudo perfeito, amo meu jardim, amo essa paz, amo a natureza e honra ao Criador de tudo por toda beleza do universo. 
      Lembrei de outro momento abençoado quando meu filho tinha mais ou menos dois anos e meio. Eu estava me sentindo triste e magoada por qualquer razão. No soninho da tarde dele aproveitei para chorar, não sei o porquê, mas no banheiro sempre foi para mim o melhor lugar para chorar. Outra mania minha é nunca fechar portas. De repente ele apareceu entrando no banheiro e com as mãozinhas levantadas e os olhinhos arregalados falou: - Mamãe não se mexe, fica paradinha, não se mexe. 
   Eu estava sentada, tinha uma janela na parede ao lado do vaso sanitário e o sol entrava audaciosamente àquela hora. Casa com quintal, plantas e árvores, pensei logo em algum bichinho pousado na minha cabeça: lagarta, aranha, formiga, borboleta, lagartixa, abelha ou....  Ele foi se aproximando mantendo as mãozinhas levantadas e eu olhando para ele com meu rosto cheio de lágrimas. Ele chegou bem perto com um lindo e enigmático sorriso: - ‘Mamãe, alguém está enchendo você de brilhinhos, você está toda brilhando’.  Os raios de sol douravam as lágrimas e uns fios brancos de cabelos que começavam a aparecer. A pureza dele foi tanta que senti a presença do Criador que consola cheio de amor. 
    E agora estava sentindo a presença do Criador que premia deixando que eu usufruísse daquele momentâneo paraíso. 
     Fui desperta daquela semelhança de momentos incríveis pela campainha insistente do portão. Tive vontade de ignorar, quem viria atrapalhar uma manhã tão maravilhosa, alguma criatura sem importância, mas como o som da campainha insistia, vesti o roupão e fui atender. 
      Um menino de uns nove ou dez anos: - “Oi tia, tem coisa pra recicrage?” 
      Os pelos do meu corpo arrepiaram, fiquei paralisada, passei trinta e cinco anos da minha vida dando aulas em diversas escolas, ensinando, educando, orientando e doeu muito ver aquela criança transformando descartável em pão e pela linguagem dele sem frequentar a escola. Junto um cão do estilo vira-lata que sentado ao lado dele olhava para mim com um olhar simpático.  – Aguardem um pouquinho, falei para eles.  O cão balançou a cabeça como que agradecendo.  
     Entrei rapidamente em casa, peguei minha bolsa tirei uma nota de cinquenta reais e levei para o menino. A intenção era despachá-los rapidamente para eu voltar ao sossego. Ele olhou para a nota, olhou para mim: - tia não tô pedindo dinheiro, tô pedindo material pra recicrage. 
      O cão levantou-se, não olhou para mim e virou-se para ir embora. 
    Levei um forte tapa quântico. Quanto orgulho naquela criança pelo que estava fazendo, quanta dignidade daquele menino! Que situação, que aula. E agora? 
      Perguntei, qual seu nome e do seu amigo? Eu sou João e ele é Veludo.  
     Veludo voltou, sentou-se novamente perto do menino e de cabeça e orelhas em pé olhava para mim. João você é um grande professor acabou de me dar uma aula com muita sabedoria do que é respeito pelo outro e o que é dignidade. Receba o dinheiro por ter me ensinado tanto, pela aula, pela grandeza da sua atitude. Voltem amanhã que eu vou separar o material para reciclagem. Ele pegou a nota dizendo eu volto amanhã. 
      Veludo se levantou, sacudiu o rabo e eu poderia jurar que ele sorriu. 
      Naquele momento senti o Criador mostrando o que é respeito e gratidão pelo próximo. 
      No meu ouvido ficou a pergunta insistente: - “ Oi tia, tem alguma coisa para recicrage?” 
     Não senti culpa, mas senti responsabilidade. Dentro de mim tem um pouco daquele menino, de todas as crianças e animais que vivem à margem da sociedade com muito poucas opções. O mínimo que posso fazer é separar com cuidado o lixo, o descartável e pensar que no final da linha tem alguém esperando por aquele material. 
     Entendi também que gritar pela Floresta Amazônica, que parece ser um desafio tão distante, é pouco e quase desnecessário porque tem um pedacinho da Floresta Amazônica no meu Estado, no meu município, no meu bairro, na minha rua, na minha casa e dentro de mim. Uma pequena ação de cada um o universo estará a salvo. 
     “Oi tia, tem alguma coisa pra recicrage?”  

 


 




Conto publicado no livro: "Casos de amor (e lambanças)"- Edição 2021
Janeiro de 2022

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