Juviniano Gomes de Cantalice
Caicó / RN

 

 

A mulher e o tear

 

         
Recentemente, lendo a teoria platônica do mundo das ideias, veio-me a seguinte inquietação: o que diria Platão com seus arquétipos se ouvisse o inusitado caso que me ocorrera na infância? Pois há de se acreditar, como acreditava o filósofo grego, que as coisas que existem no mundo não nos são tão estranhas quanto se parecem, esquecidas sim, mas não estranhas; já as vivenciamos, ou as provamos em algum outro tempo, basta que relembremos. Creio que foi o herói joyciano Bloom que, ao explicar à esposa Molly o significado da palavra metempsicose, referiu-se a esta como uma experiência vivida anteriormente pelo sujeito e por ele esquecida. Ora, talvez o evento que me ocorrera seja um relembrar. Por isso, caro leitor, ouça-me com bastante atenção e tire suas conclusões!
O fato se deu numa tarde de 20 de dezembro de 1982. Estávamos todos em casa: meus pais, meus dois irmãos pequenos e eu. De repente, resolvo sair para tomar um pouco de ar, pois o sol era infernal e o calor incomodava bastante. Ao assim proceder, deparo-me com uma mulher que passava, despreocupada, pelo outro lado da rua. Notei que ela usava um longo vestido azul e calçava sandálias baixas de couro curtido; seus cabelos, enrodilhados numa espécie de coque no centro da cabeça, lembrou-me as gueixas japonesas que costumava ver em certos filmes antigos. Ao avistar-me, sorriu levemente e acenou com uma das mãos para que eu me aproximasse dela, ao que fiz prontamente. Assim, estando bem perto, a ponto de sentir seu perfume, que, de uma estranheza tal, perturbou-me os sentidos, sussurrou em meu ouvido algo que me perturbaria profundamente. É bem verdade que, por muitos anos após aquele enigmático encontro, suas palavras persistiam em minha cabeça; e, hoje, já bem velho, quando me pego pensando no fantástico daquele evento, como faço agora, um frio percorre minha espinha dorsal. Ela havia, na ocasião, acabado de confessar que vinha de um lugar muito distante no tempo, e, com uma convicção assustadora, afirmava ser a minha mãe.
Asseguro que, cada palavra sua, sussurrada em meu ouvido, deixara-me apavorado. Ora, eu tinha, naquele instante, apenas treze anos, senão menos. Lembro-me de que ao ouvir tal mulher, corri para dentro de casa chorando feito um louco. Ao chegar à sala, vi minha mãe serena e despreocupada como sempre, tecendo um belo tapete azul no seu tear. De fato, alguns e modestos traços de minha mãe lembravam algo da estranha mulher, mas nada que justificasse o que esta havia acabado de me dizer. Nisso, tentei esquecer o ocorrido que, pela sua estranheza, fazia-me acreditar que talvez vivêssemos em dois mundos distintos. Segui o conselho de Bacon: ignorar é de fato esquecer. E eu o ignorei, pelo menos, hipoteticamente, pois sempre ao sair à frente de casa, a imagem da mulher de vestido azul, me vinha à cabeça, e, assim, voltava às pressas para junto de minha mãe que, comumente em seu tear, com seu tapete azul inacabado, parecia querer reter o tempo em suas mãos.

 

Excelente conto fantástico e tragicômico. É um conto presságio.
(Marinalva Freire, Filóloga).
As palavras são símbolos que postulam uma memória
compartilhada. A que agora quero historiar é somente
minha; aqueles que a compartilharam estão mortos.
(Jorge Luís Borges, O livro de areia).


 




Conto publicado no livro "Contos Selecionados"
Edição Especial - Julho de 2021

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