A Literatura de Cordel continua um expressivo meio de comunicação neste século XXI, apesar da morte, tantas vezes anunciada, ao longo dos tempos. Felizmente, enquanto expressão cultural, permanece, adaptada, reinventada, no desempenho de suas funções sociais. Informar, formar, divertir, socializar ou poetizar, conforme os diferentes temas que retrata e o enfoque abordado.
Da oralidade, lá em suas origens remotas, à era tecnológica, hoje, é real a transformação e adaptação, compatível à própria evolução da humanidade. Os folhetos impressos em tipografias artesanais, tipo a tipo organizado manualmente, impressos em papel jornal de qualidade duvidosa. Fotos de artistas da época ou de xilogravuras temáticas embelezavam suas capas. Das maletas, que serviam de bancas de venda, os folhetos eram pendurados em cordões (cordéis) e vendidos nas feiras das pequenas cidades. Percorriam espaços geográficos diferentes. Venciam o tempo. Cantados na feira ou nos sítios tinham o texto parado para aguçar a curiosidade dos ouvintes e compradores – estratégia de marketing... Já comprados eram guardados, como preciosidade, por uma população quase sempre analfabeta. Resumidamente, essa foi a trajetória da literatura de cordel em fins do século XIX até meados do século XX, período onde grandes nomes fizeram escola.
A partir da década de 1970, o folheto foi sendo rebatizado: Literatura de Cordel. Estudiosos do folclore e acadêmicos passaram a se interessar em pesquisar o folheto – seus temas, seus autores, suas influências na comunicação de massas, etc. Novos nomes vão aparecendo e sendo difundidos. Novas temáticas são abordadas – afinal, como meio de comunicação, os folhetos precisam estar antenados aos fatos da atualidade. Impressão de qualidade. Divulgação na internet, em sites específicos. Novas formas de apresentação: eventos culturais, feiras de artesanato, concursos de violeiros, entre outros.
O bom de tudo é que, o folheto ou a literatura de cordel, enriquece a já reconhecida e não tanto preconceituosa pluralidade cultural do nosso Brasil.

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SECA, CORDEL E FOLCLORE

Thelma Linhares

Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais
Pesquisadora do folclore com trabalhos publicados pela
FUNDAJ - Fundação Joaquim Nabuco
Acadêmica titular da Litteraria Academiae Lima Barreto - Cadeira nº 8

Observar, relacionar e generalizar fatos e coincidências com a meteorologia talvez seja uma das atividades humanas mais antigas, haja vista a relação de dependência entre o homem o meio-ambiente existente desde os primórdios da humanidade, na constante luta pela sobrevivência da espécie.

O movimento dos astros, do vento e das nuvens, o canto dos pássaros, o comportamento de insetos e outros animais, a evolução do ciclo de determinados vegetais, a coincidência de números e datas são fatos que, aparentemente, sem qualquer relação científica, explicam, justificam e fundamentam a previsibilidade do tempo.

Esse saber popular, acumulado ao longo dos séculos, coexiste com a meteorologia científica e sofisticado, monitorada por computadores e satélites artificiais, não apenas no sertão nordestino, mas em outras áreas do Brasil agrícola.

Como influência nas produções literárias, é a temática da seca um dos fenômenos naturais que mais aparece nos textos de autores, de ontem e de hoje. Escritores brasileiros imortalizaram, em suas obras, a luta pela sobrevivência, as tristezas das retiradas, o drama humano, pessoal e social, advindo da seca. Raquel de Queiroz em O Quinze e Graciliano Ramos em Vidas Secas são exemplos da literatura erudita, tão clássica quanto atual.

Já a música popular brasileira - MPB - também tem, na seca, rico filão temático. Como não citar Asa Branca, imortalizada na voz de Luiz - Lua - Gonzaga?! E Triste Partida, de Patativa do Assaré, também gravada pelo rei do baião?!

E como o tema seca é vivenciado em diferentes manifestações folclóricas por este Brasil afora?

É nas superstições e crendices, reforçadas ou não por uma religiosidade popular, misto de fé e ingenuidade, que a população simples de áreas brasileiras, geográfica e historicamente secas, busca na proteção divina a minimização das misérias humanas e da pobreza crônica, agravadas pelas estiagens e secas periódicas. A idéia de castigo divino, corretivo de desvios de conduta, violências e descrença em Deus também justifica as secas e suas conseqüências socioeconômicas e pessoais.

João Naves de Melo (1) descreve um ritual de preces para fazer chover vivenciado na década de 1970, no município de São Francisco. Naquela ocasião, segundo o pesquisador, procissões eram realizadas em novenas a partir do meio-dia, quando o sol é mais causticante no sertão nordestino. Mulheres, homens e crianças peregrinavam pelas ruas do município, cantando, rezando e carregando oferendas sobre a cabeça (garrafas com água, pedras e ramos verdes) em sinal de penitência e pedidos de proteção e merecimento das benevolências de Deus-Pai.

Prática semelhante é vivenciada na região Sul, conforme reportagens em diversos jornais do país, ao longo das últimas três décadas.

Zezito Guedes (2) registrou alguns ditos populares ressaltando a relação entre seca e religiosidade popular. Eis alguns:

- A seca é um castigo para o povo que não tem mais fé.
- A seca só aparece quando o povo está pecando demais.
- A falta de merecimento traz a seca para o sertão.
- A seca acontece de vez em quando para desconto dos pecados.
- A seca vem para que o povo se lembre de Deus.
- Pela desobediência do povo é que vem a seca para a terra.
- O povo profana a Deus e a seca vem com castigo.


Muitos são os sinais tidos como certeza, capazes de profetizar o bom ou mau inverno. Entre os maus presságios preconizados pelo comportamento do animais sobressaem: formigas da roça procurando lugares baixos nos leitos dos rios, no final do ano, desaparecimento de abelhas com ferrão e asa branca arribando para outras áreas.

Em relação às datas, destacam-se: o primeiro dia do ano e o segundo de fevereiro. Se chuvosos, mau inverno ou seca. Se forem claros e limpos, o inverno será bom, de fartas colheitas. Domingo de carnaval e Semana Santa com chuvas? O inverno é certo!

Datas religiosas católicas também são referências para se prever um bom ou mau inverno: 19 de março (dia de São José) sendo o dia claro e de céu limpo, seca na certa. Oito de dezembro (dia de Nossa Senhora da Conceição) havendo relâmpagos na véspera, bom inverno. 13 de dezembro (dia de Santa Luzia) e as pedras de sal: colocadas ao sereno, de 12 para 13, representam, cada uma, um mês do primeiro semestre. Antes do amanhecer, as pedras que estiverem úmidas indicam chuvas para os meses correspondentes. Uma outra profecia de Santa Luzia consiste em observar os dias 14 a 19 de dezembro. Para cada dia corresponde um mês do primeiro semestre. Assim, chovendo por exemplo, no dia 17, o mês de abril será bom de inverno. 24 de dezembro (Natal), havendo relâmpagos para cima ou chuva, o inverno está garantido.

O artesanato de temática da seca é muito expressivo, particularmente o de Caruaru (PE), da chamada escola do Mestre Vitalino. Pintadas ou, simplesmente, no barro cozido, são representadas cenas de retiradas, quando a população, sofrida e castigada pela seca, carrega seus poucos pertences materiais em trouxas sobre a cabeça ou penduradas no cajado apoiado nos ombros. Partem em busca de melhores dias ou, na pior das hipóteses, fogem da morte imediata e certa. Muitas vezes, famílias inteiras se fazem acompanhar pelos animais de estimação e ganham estrada a pé, em caminhões paus-de-arara ou ônibus, tornando-se fonte de inspiração para o artesão. Imagens reais que o artista popular cria e reproduz usando matéria-prima extraída da própria natureza - barro, madeira, pedra, etc.

A xilogravura, em papel ou tecido, é outra expressão do artesanato para retratar a seca e suas conseqüências pessoais e sociais. J. Borges, poeta popular e artesão, por exemplo, é um dos artistas nordestinos que emprega a técnica da xilogravura (impressão cuja matriz é talhada na madeira) para exteriorizar sua visão de mundo, seus sentimentos, sua expressão artística, seu protesto.

Mas, é na literatura de cordel, no folheto, que a temática da seca atinge o ápice da expressão comunicativa, enquanto crônica, narrativa, protesto político-social, jornalismo.

É preciso não esquecer que, até meados deste século, tanto o folheto quanto o poeta popular, que improvisava e cantava nas feiras livres nordestinas, os casos e "causos", exerciam a função comunicativa que hoje cabe à mídia, em particular, ao rádio e à televisão.

É importante lembrar que a população, cuja sobrevivência depende intimamente da relação homem/natureza, e que convive no seu cotidiano com as estiagens prolongadas e com as secas periódicas, continua sendo aquela dos menos favorecidos economicamente, quase sempre com um mínimo grau de escolaridade ou analfabetos, que usa tecnologia e equipamentos rústicos de conhecimento empírico do saber tradicional e informalmente transmitido através das gerações. Permanecendo à margem do processo criativo do conhecimento científico e do saber socialmente aceito, parcela considerável da população brasileira encontra no saber popular apoio para a sua sabedoria, refletindo-se no pensar, sentir e agir coletivo.

"A Triste partida", de Patativa do Assaré (3), cantada por Luiz Gonzaga, talvez seja a síntese de tudo que pode acontecer e se relacionar à seca, não passando despercebido da sensibilidade do poeta popular, conforme se observa nos versos abaixo:

 

A Triste partida

Setembro passou
Outubro e novembro
Já tamo em dezembro
Meu Deus, que é de nós?
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
E da fome feroz
A 13 do mês ele fez experiência
Perdeu sua crença nas pedra de sal
Mas noutra experiência com força se agarra
Pensando na barra do alegre Natal
Rompeu-se o Natal, porém barra não veio
O sol bem vermeio nasceu muito além
Na copa da mata buzina a cigarra
Ninguém vê a barra, pois barra não tem
Sem chuva na terra descamba janeiro
Depois fevereiro e o mermo verão
Entonce o nortista, pensando consigo
Diz: isso é castigo, não chove mais não
Apela pra março, que é o mês preferido
Do santo querido, o senhor São José
Mas nada de chuva, tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito o resto de fé
Agora pensando ele segue outra trilha
Chamando a família começa a dizer:
Eu vendo o meu burro, meu jegue, o cavalo
Nós vamo a São Paulo vivê ou morrê
Nós vamo a São Paulo que a coisa tá feia
Por terras alheia nós vamo vagar
Se o nosso destino não for tão mesquinho
Pro mesmo cantinho nós torna a voltar
E vende seu burro, jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo vendero também
Pois logo feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro lhe compra o que tem
Em um caminhão ele joga a família
Chegou o triste dia, já vai viajar
A seca terrive que tudo devora
Ai, lhe bota pra fora da terra natal
O carro já corre no topo da serra
Oiando pra terra, seu berço, seu lar
Aquele nortista partido de pena
De longe acena adeus, meu lugar
No dia seguinte já tudo enfadado
E o carro embalado veloz a correr
Tão triste, coitado, falando saudoso
Um seu filho choroso exclama a dizer:
De pena e saudade, papai sei que morro
Meu pobre cachorro quem dá de comer?
Já outro pergunta: mãezinha, e meu gato
Com fome e sem teto, Mimi vai morrer
E a linda pequena, tremendo de medo:
Mamãe meu brinquedo, meu pé de fulô
Meu pé de roseira, coitado, ele seca
E minha boneca também lá ficou
E assim vão deixando com choro e gemido
Do berço querido o céu lindo e azul
O pai pesaroso, o filho pensando
E o carro rodando na estrada do sul
Chegaro em São Paulo sem cobre e quebrado
E o pobre acanhado procura o patrão
Só vê cara estranha. Infeliz é a gente
Tudo é diferente do caro torrão
Trabalha dois anos, três anos e mais ano
E sempre no plano de um dia voltar
Mas nunca ele pode, só vive devendo
E assim vai sofrendo e é sofrer sem parar
Se alguma notícia das banda do norte
Tem ele, por sorte, o gosto de ouvir
Lhe bate no peito saudade de moio
E as águas dos oios começa a cair
Do mundo afastado ali vive preso,
Sofrendo desprezo, devendo ao patrão
O tempo rodando, vai dia, vem dia
E aquela família não volta mais não
Distante da terra tão seca, tão boa
Exposto à garoa, a lama e ao paul
Faz pena o nortista, tão forte tão bravo,
Viver como escravo nas terras do sul. (3)

Como outros poetas populares cantaram a seca?


"...O sertão é terra boa
se o ano é bom de inverno
tudo fica mais contente
mais bonito e mais moderno
porém quando o ano é seco
o sertão vira um inferno..." (4)

"... Outros dizem que o mal
É uma tuberculose
Incurável apodrecida
Como uma metamorfose
Só tem remédio no céu
E Deus não manda uma dose..." (5)

"...Mas vamos pedir a Deus
e a padrinho Cícero Romão
em nome dos inocentes
mandai chuva pra nação
para os pobres fragelados
não morrer sem remissão
...frei Damião pede agora
que receba a oração
bote na porta da frente
com fé em frei Damião
e cave abaixo do pote
que encontra 3 carvão
com um dos carvão escreva
Jesus Maria e José
na porta da tua casa
que Jesus de Nazaré
ajuda arranjar o pão
com força coragem e fé
cave a terra e se achar
guarde os três carvãozinho
reze uns três pai nosso
ofereça a meu padrinho
que ele ajuda a nós
pra criar nossos filhinhos." (6)

"...O mundo vai pegar fogo
por causa da corrupção
e Deus envia o castigo
pra toda população
devido a tanta anarquia
haja crise e carestia
fome e seca no sertão..." (7)

"...quando à espera
do inverno estamos
de manhã olhamos
para atmosfera
Vemos na esfera
o tempo mudando
o vento parado
o sol diferente
e lá no nascente
nevoeiro armado...
...o sol nasce muito branco
o vento desaparece
de noite na lua há círculo
e o nascente escurece
o gado urra no campo
o chão na várzea umedece.
Tudo a esperar
olha de hora em hora
diz parece agora
que ouvi trovejar
porque ouvi zuar
presenciei bem
não fica ninguém
que não vá olhar
para observar
se é chuva que vem.
Olha-se para o nascente
vê-se aquela escuridão
as nuvens aglomerando
tomando de vão em vão
sopra o vento, abre o relâmpago
com pouco estronda o trovão..." (8)

"...O sertanejo assistido
não quer guerra, só paz
não carece fugir da seca
Sua terra lhe satisfaz
Molhada, nela dá tudo
Com labuta lhe dá mais...
Chove por exemplo hoje
eis o festim do agreste
canta o sapo na lagoa
e o passarinho no cipestre
cupim cria asas e voa
com pouco o mato se veste." (9)


Como se percebe, a sabedoria popular da temática da seca, expressada por diferentes manifestações folclóricas, é bastante rica e diversificada nos quatro cantos do país. É justificada, até, pela mobilidade do nordestino, expulso do seu torrão natal pela inclemência das secas periódicas e pela falta de uma política socioeconômica mais justa e que, somada ao conhecimento socialmente aceito, com certeza, só acrescenta à cultura brasileira.
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Referências bibliográficas:
1. Melo, João Naves. "Preces para chover". In Boletim da Comissão Mineira de Folclore. Belo Horizonte, ano 1, nº 2, maio de 1976.
2. Guedes, Zezito. O folclore e a seca. Recife, Fundação Joaquim Nabuco. Folclore, 216, setembro de 1991.
3. Assaré, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. 6ª ed. Crato, Fundação Ibiapana/ Instituto Cultural do Cariri / Editora Vozes, 1986.
4. Leite, José Costa. Sertão, folclore e cordel: a boiada sertaneja.
5. Soares, José. O fenômeno dos fenômenos: o rio São Francisco secando.
6. Borges, José Francisco. O mistério dos 3 carvão e os horrores da fome.
7. Leite, José Costa. O fim do mundo presente.
8. Athayde, José Martins. Suspiros de um sertanejo.
9. Bandeira, Pedro Francisco. A seca de setenta.
- Queiroz, Raquel de. O Quinze. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora, 1972.
- Ramos, Graciliano. Vidas secas. São Paulo, Livraria Martins Editora S.A., 1970.
- Cascudo, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 4ª ed. São Paulo, Melhoramentos; Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1979. - Santos, Rinaldo dos. A revolução nordestina. 1. A epopéia das secas - uma verdade histórica que interessa ao Brasil inteiro. Recife, Ed. Tropical Ltda.

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Leia também: A história da Literatura de Cordel

Dois ilustres folcloristas brasileiros, Luís da Câmara Cascudo e Manuel Diéges Júnior, escreveram sobre a origem da nossa literatura de cordel; Cascudo, em vários ensaios e livros, sobretudo no seu "Vaqueiros e Cantadores" e "Cinco Livros do Povo", e Manuel Diéges Júnior especialmente no ensaio "Ciclos Temáticos na Literatura de Cordel" mostraram a vinculação dos folhetos de feira com as "folhas volantes" ou "folhas soltas", em Portugal, cuja venda era privilégio de cegos, conforme informava Téofilo Braga.

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Origem e instituição do Cangaço
Tania Maria de Sousa Cardoso
Pedagoga e especializanda em Literatura Brasileira