José Faria Nunes
Caçu / GO

 

 

Morro na morte de meu passado

 


A cada dia, morro na morte de meu passado.
Morro na morte de meus amigos humanos,
de meus amigos caninos, felinos, de todos eles.
Morro até na morte de meu porquinho da Índia.
 
Morro na morte de todos que, de alguma forma,
alimentavam-me a vida, ainda que por instintos
da própria sobrevivência, pelo que com eles
compartilhava: alimento, carinho, companheirismo.
Morro na morte da lembrança coletiva de fatos
que um dia protagonizei e que morreram
até na memória de quantos deles se usufruíram.
 
Morro nos fatos que de fato morreram
ou pela conveniência foram apagados,
para dar lugar a fatos outros, sucedâneos
que se nutriam da essência do que se pretendia ignorar.
Tudo falso, mero realce na sombra de novéis fatos.
 
Morro em doses homeopáticas, à medida em que
até a própria lembrança se esvai. Quando a vida
não bastava, tinha que a reinventar nos sonhos.
E nos sonhos, o real que me faltava, me era possível
sua concretude nos brinquedos, no caminhar para a roça,
no alimentar da produção para continuidade da vida.
Paradoxo: realidade e sonho, sonho e vida, sonho intangível,
tecido na fantasia da tangibilidade, da materialidade sonhada.
 
Da humilde vida de filho de pais que pouco mais que braços
tinham para o labor de seu tempo, de meu tempo,
tempo de capinador de roça, tempo de roçagem de pastos,
para si e para algum patrão que pouco via e muito cobrava.
Os amigos eram tão poucos e menos ainda os que sobrevida
tiveram para compartilhar os últimos dias de meus pais.
 
Com os olhos cá deste mortal corpo, leio a prescrição final:
como o foi com meus pais, com meus animaizinhos, análogo
comigo será. Troféus e diplomas de nada me servirão.
Meus livros, títulos de honorabilidade, nada subsistirá
e o tempo encarregar-se-á de tudo consumir. Até a planta
cuja sombra me abrigou, ou se foi ou há de resíduo se tornar
para o amanho da terra que em outras vidas há de se consumir
na eternidade dos tempos. E quanto a mim, apesar do morrer
constante, que ao menos se perpetue na memória do que deixar.
Que a memória se eternize nas entrelinhas de meus escritos.
Que o reconhecimento exista no que valham.
Que o juízo de valor
Que sobre eles recair seja isento de subjetividade passional.
Que o transcurso de meus mais de 70 anos de sobrevida
(ou subvida?) transformem-se ao menos em insumo,
alimento para outros sonhos, pois assim esta vida
terá valido a pena ter sido vivida. Amém!

 

 

 




Poema publicado no livro "Gente importa mais que coisas"
Edição 2020 - Novembro de 2020

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