Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP

 

 

Café amargo

 

 
            O casal já tinha dois filhos e nessa ocasião souberam que havia boas oportunidades de trabalho e outros benefícios em um país da América do Sul.  Lá chegando,  teriam hospedagem e encaminhamento para alguma fazenda de café. Então,  devido a situação do momento,  decidiram aventurar.   A viagem no vapor Zaanland, de companhia holandesa, durou praticamente um mês, chegando ao Porto de Santos em 1908.  Tudo era muito diferente para eles, especialmente o clima.  Da hospedaria dos imigrantes foram encaminhados  para uma fazenda no interior de São Paulo:  Bragança.   
            Lá chegando, rapidamente perceberam a realidade. Não foi  como o prometido. Em poucos dias perceberam que foram enganados, mas tinham que suportar, pelo menos por um tempo.   Nas raras ocasiões que podiam ir até a cidade, ficavam sabendo de histórias ruins vividas por escravos africanos,  e  por seus patrícios (conterrâneos),  bem como por imigrantes de outras nações. 
            Depois de praticamente três anos nesta fazenda,   o casal  insatisfeito decide sair daquele lugar sinistro,  devido à discordâncias com o administrador, maus tratos...  Miguel falou com ele sobre suas intenções,  todavia não obteve permissão para partirem.  A permanência do casal piorava a cada dia, naquele lugar.  A realidade era clara, estavam em um cárcere.  Não tinha outra maneira a não ser saírem escondidos, durante a noite.    Então deram um  jeito de contratar um carroceiro da cidade,  para ajudá-los.   Marcaram o encontro em  um local fora da propriedade, de madrugada.  Além do casal e crianças, também foram com eles um imigrante português e um espanhol.  
            Era dia 31 de março de 1912. Já estavam distante dez quilômetros da fazenda, quando apareceu o administrador, com um capanga, gritando:-  Ladrões, ladrões!   Eles estavam com foices e paus, exigiram que os colonos retornassem e como se recusaram, foram  agredidos fisicamente, inclusive as crianças.  Deram diversos chutes e pauladas nos colonos.   Até o bebê, de apenas dois meses,  recebeu um pontapé do administrador.  Em um momento que o pai das crianças estava caído no chão, sem forças para levantar, o administrador tentou furar o olho da mãe das crianças,  com a ponta do mesmo pau que já lhe havia ferido a cabeça.  Felizmente ele não conseguiu.  Além de toda  agressividade, roubaram o pouco dinheiro que os colonos juntaram.   
            Depois de todo o espancamento, com os colonos machucados, fizeram o “carroceiro ” voltar   até a fazenda, com todos eles, aprisionando-os.    Ao chegarem à fazenda, a mulher do latifundiário disse: - Por que em lugar de meter o cacete,  não matou esses canalhas?    Ameaçaram o carroceiro,  convencendo-o de assinar uma declaração falsa, contra os imigrantes.    
            Assim que liberado,  o carroceiro voltou para sua casa.  Aborrecido com aquela situação, ainda com medo, contou tudo que aconteceu para um amigo,  dono do armazém.   O comerciante Rafael ficou indignado com o que ouvira.    Aguardou a saída do carroceiro e imediatamente foi encontro de um membro da “Sociedade dos Colonos Espanhóis 2 de Maio”  e juntos denunciaram a ocorrência para o delegado de polícia, o qual deu ordens imediatas a seus subordinados para irem até a  fazenda ,  averiguar o que tinha acontecido. 
            Lá chegando, os soldados  comprovaram que o espancamento fora pior do que se imaginava.  Um deles estava tão machucado na cabeça, que nem conseguia falar.   O pai das crianças estava com diversos hematomas, cortes profundos na cabeça e com  ferimentos no pé.   A esposa, recém-parida, também estava em estado lamentável.    Diante da gravidade dos ferimentos,   foram retirados de lá e encaminhados  para um hospital da cidade, onde ficaram internados por um bom tempo.  Inclusive as crianças.
            A  “Sociedade dos Espanhóis 2 de Maio” manifestou  repúdio em diversos jornais, como por exemplo, o Jornal "O Estado de São Paulo”, “Diário Espanhol”, um outro jornal Italiano etc. Esta agressão bárbara foi denunciada também para o Cônsul da Espanha e da Itália  e outras autoridades.    A notícia correu a galope.   A hospedaria, a qual  abraçava a causa de agenciamento de trabalhadores do além-mar, também foi pressionada e alertada para que aquele latifundiário não conseguisse mais colonos estrangeiros para trabalhar para ele.  Houve muita pressão, muito esforço, para que houvesse respeito e leis, para aqueles  latifundiários acostumados a tortura, a exploração de seres humanos.    
            Apesar do apoio recebido, de toda a divulgação e pressão pública naquele ano de 1912, faltou a  devida ação da justiça.   O julgamento do administrador e capataz ocorreu  em uma data, sem a presença dos espancados.   Os dois violentos foram defendidos por  um advogado do  dono da fazenda  e  ... absolvidos.    Embora na ocasião o delegado tenha enviado uma escolta para verificação, todos tinham conhecimento de que ele tinha um envolvimento amoroso com alguém da família daquele latifundiário.  Pelas evidências, devido a ganância,  o  proprietário daquele latifúndio (JRJ)  deve ter continuado com suas arbitrariedades.
            Estamos em 2021, em plena pandemia,  108 anos após aquela sinistra situação.  Não sei  o que aconteceu posteriormente com os outros dois espancados:   imigrante português José Antônio Vieira e o espanhol  Francisco Guille Navarro. Quanto ao casal, depois que saíram do hospital, foram morar em outra  região,  voltaram a trabalhar como lavradores.  Tiveram mais uma filha: a Vitória. Talvez este nome tenha representado o sentimento deles, com a vitória de terem sobrevivido a aqueles malignos.  Não conseguiram regressar para Cáceres – Extremadura -  Espanha.   Ao partirem para a eternidade, foram sepultados em Franco da Rocha-SP.  Aquele bebê  que foi chutado - Anna Polido Hurtado -  de apenas dois meses,  agora é nome de uma rua de São Paulo.
            Seus descendentes são numerosos, mas poucos conhecem esta história.   Naquela época algumas histórias eram reservadas somente aos adultos;  com apenas um olhar as crianças já entendiam a mensagem e se retiravam do local, proibidos de participarem das conversas.  Talvez isso  explique o desconhecimento.    Mas a internet está aí,  as páginas de jornais foram digitalizadas, estão disponíveis para quem desejar acessar.  
            Esta é uma parte da história de pessoas de bem,  que  constará  em uma tese de doutorado,  de uma brasileira, em uma importante universidade francesa,  inclusive com meu depoimento.  Grata por esta preciosa oportunidade.  
            O que posso afirmar, com toda convicção, é que tudo que fazemos fica registrado no universo.  
            Embora humilhados, o casal ficou na história como vítimas, não como vilões.  Não vale a pena explorar o semelhante,  nem discriminá-lo,  nem impor  religião e costumes, nem querer ser o dono da verdade.  Ninguém é eterno, estamos aqui só de passagem. Continuamos vivos através de nossos atos de dignidade e amor, sendo exemplo para a descendência. Obrigada bisavô Miguel Polido Gonzalez e bisavó Florentina Hurtado Mirón.  

 




Conto publicado no livro "Vivendo e aprendendo " - Contos selecionados
Edição Especial - Dezembro de 2020

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