João Paulo Hergesel
Alumínio / SP

 

 

Cacos de argila branca

 

O barulho do vaso quebrando interrompeu meu sono: será que ele se machucou? Levantei num supetão, com o coração remexido e a camisola amassada, para verificar o que acontecia na sala. Ele me encarou com feição raivosa, como quem não queria que eu estivesse vendo a cena. Babava um pouco pelos cantos e tentava conter o sangue da mão cortada pelos cacos de argila branca.
– Pai, tá tudo bem?
Um tapa me jogou no sofá feito louça suja que não dá para lavar. Deitei num supetão, com a camisola remexida e o coração amassado. Machucava mais a falta de sensibilidade do que o golpe. Mais o gesto do que o que foi gesticulado. Mais o cheiro de álcool do que o hematoma causado pela pancada. Ele saiu para o quarto e me deixou com a dor e com as lágrimas.
Mantive a posição de feto até amanhecer, encolhida entre almofadas enquanto o cabelo executava a performance de colar no suor do rosto. Os tiquetaqueares do relógio, descompassados e sem pausa para o fôlego, latejavam no âmago do cérebro, tal qual marteladas em uma madeira inocente.
– Depois da terceira, a gente se acostuma – contei, na volta da escola, para a Laura. A Laura que não se conformava. A Laura que chorava por se colocar no meu lugar. A Laura que tinha um pai que não batia nela.
– Você tem que denunciar.
– Esqueceu que somos só eu e ele? Que se ele for preso, vão me colocar num lar para crianças órfãs? Que adolescente num lugar desses atrapalha mais do que um bêbado que espanca a própria filha? E acima de tudo, que ele é o meu pai e eu o amo?
A Laura que não tinha resposta.
Pouco antes do jantar, ele me ligou gentil, pedindo para que eu não me preocupasse, que ele traria pizza. Sua voz perguntava qual seria o sabor, junto ao barulho do vento e das buzinas que se infiltravam na ligação. Entre a de frango com requeijão e a de calabresa com muçarela, escolhi a meio a meio.
– Com borda recheada, pode ser?
Não me respondeu. Talvez pudesse. Pudesse ser de queijo cheddar, que é mais forte e dá um sabor azedinho à massa. Ou senão catupiry, que parece ter a maciez de um pedaço de veludo comestível. Talvez não pudesse. Talvez fosse melhor deixar a borda seca, branca, consistente, feito a argila branca do vaso que um dia existiu.
Eu só queria uma resposta. Um sim ou um não. Um quem sabe. Um vou ver quanto acrescenta no preço final. Em vez disso, escutei a batida, um tapa que me jogou no sofá com o coração em cacos. A certeza da não presença era mais flamejante do que a presença intoxicada e agressiva. Eu só queria meu pai em casa.

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Setembro de 2017