Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

 

Do que o amor é capaz

 

         -Parece que ainda me vejo menina. Pele muito alva, olhos azuis como gotas d'água, cabelos dourados e cacheados que me davam mais ainda um ar angelical. As pessoas comentavam: esta menina está mais para uma boneca vestida de anjo. Ela tem a alma de vidro, dizia mamãe. Assim fui crescendo me achando mesmo diferente das outras meninas: mais bonita, mais inteligente, mais querida e mais amada, principalmente por meus pais, pois eu era a única menina no meio de quatro irmãos que também me tinham como a princesinha da casa. Fechada numa redoma que me protegia contra tudo e contra todos, me tornei uma adolescente insegura e receosa, mas ao mesmo tempo tendo da vida uma expectativa promissora. Eu ainda não entendia a fundo, o significado das palavras medo, violência, mentira, traição. Entretanto o tempo se encarregaria de me mostrar tudo isso. De alcançar, pela experiência, a percepção de mim mesma e da vida...
         Palavras iniciais de Dona Ana, senhora de mais de 80 anos que ainda conserva uma aparência de fragilidade que mascara a jornada acidentada que a vida lhe preparou.
         Sentada em sua cadeira de balanço na varanda que ladeia a casa, com o olhar distante para além das montanhas que avistava, falava com a voz um pouco trêmula, porém segura do que pronunciava. Eu, sua única sobrinha, um tanto quanto parecida com ela e que amava por demais esta senhora, gostava de escutar suas histórias que até então eram fragmentadas, mas que hoje me pareceu um romance narrado com pormenores. Um romance de amor e ódio, de culpa e perdão, de confiança e traição. Sobretudo de superação.
         ...Adolesci, continuou ela, e me tornei uma jovem bem bonita. Comecei a alçar voos e a ganhar novos territórios. Os amigos começaram a aparecer e, aos poucos, fui me enturmando com moças e rapazes. Parecia que o mundo era uma continuidade da minha vida familiar.
         Veio então o primeiro flerte. Petrus não era um rapaz bonito, mas bem humorado, alegre e que me cercava por todos os lados. Começamos um namoro. Em pouco tempo eu estava perdidamente apaixonada e era correspondida. Vivia ainda uma vida de princesa cujo príncipe satisfazia todos os desejos.
         Ainda na euforia do primeiro amor, um golpe me atingiu tão inesperadamente que até hoje me falta o chão ao relembrá-lo: perdi meus pais num acidente. Por vários meses me vi sem rumo e entorpecida, Aí me apeguei, como uma náufraga, de corpo e alma ao rapaz que estava namorando. Ele passou a ser o meu porto seguro.
         Resolvemos, numa manhã de outono, nos casar numa cerimônia simples, todavia de muito significado para mim.
         Coisas que até hoje não consigo explicar começaram a acontecer comigo, Após a cerimônia do casamento saímos em lua de mel. Ele me levou para uma cidadezinha próxima à nossa, tolhendo o meu desejo de fazer a viagem dos meus sonhos.    
        - Surpresa, dissera ele.
         Chegamos ao hotel de tardinha. Sem mesmo se trocar e sem se importar de dar explicações convincentes, ele saiu e me deixou sozinha e decepcionada. As horas foram se arrastando. Solitária, chorei até ficar cansada. Já era madrugada quando ele retornou. Bêbado, desalinhado, sem aliança. Compreendi assim que tinha ido para uma noite de orgia, enquanto eu massacrava os meus mais recônditos sonhos. Petrus caiu na cama  num sono profundo.
         No dia seguinte retornamos a nossa casa. Eu estava outra pessoa: calada, amarga, machucada. Com a alma de vidro quebrada. Tivemos nossa noite de núpcias em meio a sentimentos de revolta e nojo que brotaram como uma fuga dentro de mim.
         Daquele dia em diante, vivi uma vida de batalhas interiores que eu tinha que lutar para vencer cada investida e cada aniquilação. Cheguei uma vez a engravidar, mas abortei. Consequência das pancadarias a que me submetia e dos insultos diários que tive de aprender a tolerar.
         -Por que a senhora não se separou?
         -Há cinquenta anos a separação discriminava as pessoas. Eu já não tinha forças e nem sabia começar uma vida nova. Acho que nem meus irmãos compreenderiam este ato.
         Às vezes eu penso na criança e jovem que eu fui. Querida, amada, admirada. Este amor longínquo ainda me faz sorrir e as lembranças descobrem e trazem a tona coisas que vivi. O amor que vivenciei me alimenta a alma e faz com que não perca a fé na vida.
         No meu casamento fui infeliz sim, mas sinto um orgulho bem grande em poder afirmar que o meu coração não se petrificou. Antes, pulsa junto às pessoas que amei e por quem fui amada.
         Quando fiquei viúva, depois de longos anos de convivência sem sintonia e depois de uma internação hospitalar de dois anos do meu marido por problemas senis, bem no fundo do meu ser eu ri como nunca tinha rido antes e decidi que estava, ainda que já idosa, curada, liberta e pronta para recomeçar a vida. Meu "eu" foi surrado, mas minha alma saiu ilesa apesar dos maus tratos e dos desapontamentos, porque bem no fundo do meu coração tem um cantinho iluminado por um amor para sempre sedimentado que jamais se acaba. Amor verdadeiro que transcendeu o tempo, que tudo ajudou a superar, que no limite do meu equilíbrio me deu provas de que foi por ele que fui salva.

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Setembro de 2017