Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

A comadre 

 

        

           

        No tempo em que na minha família ser chamada de comadre era título nobreza e as comadres eram consideradas sábias e tinham lugar de destaque nas famílias. E quem não era comadre vivia sonhando em ser escolhida para amadrinhar um bebê recém-nascido para ser digna de receber o título tão importante na vida de uma mulher daquela comunidade.
        Certa manhã chuvosa e muito fria a comadre Martinha chegou sem avisar. Ela trabalhava na capital e só vinha de vez em quando e avisava por carta quando iria chegar e passava uma semana lá em casa. E era um reboliço, toda a vida da família girava em torno da comadre Martinha.  Ela era madrinha do Fábio, na época, era o mais novo dos irmãos. Ela chegou de repente, trazendo uma amiga.
      A minha mãe apareceu secando as mãos no avental e surpresa foi falar com a comadre Martinha. As duas, minha mãe e a comadre Martinha foram para o quarto, deixando ali parada a amiga de comadre Martinha. Fecharam a porta e conversaram por uns quinze minutos.
      Aquela jovem muito bonita, a nossos olhos infantis, deveria ter por volta de um metro e oitenta, parecia muito alta, magra, pele branca como algodão e cabelos pretos cacheados a altura dos ombros. Sorriso largo e dentes grandes e bem feitos. Vestia uma saia colorida estampada de flores, bem rodada e armada, que cobria até abaixo dos joelhos. E usava sapatos pretos de saltos médios. Imaginem quatorze olhos fixos naquela imagem que destoava do ambiente, que mais parecia saída de um livro de conto de fadas. A semelhança com um quadro na paisagem, ela sorrindo para nós e nós crianças com olhos fixos nela e estáticamente parados em silêncio. Nisso, minha mãe e a comadre Martinha voltaram à sala. Minha mãe bateu palmas dizendo: - Vamos, vamos cada um cuidando das suas coisas. Fomos saindo devagar. Elas foram para a cozinha. O que elas não sabiam é que nós, todas as crianças, estávamos espalhados, mas juntos em cumplicidade. Debaixo da mesa, atrás da porta, entre a geladeira e o fogão com o pano de prato na cabeça e o menor se aconchegou no colo da madrinha. Queríamos saber que novidade era aquela. Elas falavam muito com os olhares, com as mãos e palavras soltas em tom baixo, impossível para a gente entender aquela conversa enigmática.
       No dia seguinte, uma das crianças maiores ouviu a minha mãe falando para uma vizinha que a moça estava fugindo de um namorado que queria matá-la e disse que ela trabalhava “naquele lugar” e a vizinha com ar de espanto “Credo em Cruz”. E minha mãe recomendou: - Não comente isso a ninguém, ao que a vizinha respondeu em tom de espanto. - Nunca que eu vou abrir minha boca para falar isso, vai ser ruim para todas nós.
       Perguntamos para a moça bonita, no dia em que chegou: - Como é seu nome? Ela olhou para os lados, pensou e respondeu: - Meu nome é “Comadre”. A minha irmã indaga: – Você é madrinha de quem? – Sou madrinha de todos vocês. Rimos e passamos a gostar dela e chamá-la de Comadre.
       Ela cuidava de nós crianças e estava sempre inventando brincadeiras novas. E gostava muito de dançar e cantar para nós.
      Um dia Comadre mandou que sentássemos debaixo da castanheira, não era tempo de castanhas, e disse que iria ensinar uma língua nova, que era falada no país dos gigantes, e começou a aula: - Coloquem os dedos polegares atrás das orelhas, posicionem os três dedos do meio esticados á frente das orelhas e coloquem os dedos mindinhos encontrando no meio da testa entre os olhos. Ai que difícil! Pronto? perguntou ela. Não tirem as mãos dessa posição. Agora coloquem a língua atrás dos dentes e repitam o que eu falar: - Zoanque vanque busquenque panque zeque a zangua estaque zoaque. Pizanque rapidanque senanque acabazanque tudanque zozpanque. E fazia a gente falar aquelas palavras, bem depressa, porque era assim que falavam os gigantes. Aquela brincadeira durou a tarde toda e foi muito engraçado. Eu devia ter uns sete anos e lembro-me dessas palavras como se fosse hoje.
      Tem pessoas que passam pela vida da gente, principalmente na infância, de uma maneira tão intensa, que viram referência para sempre. Comadre é lembrada como se tivesse vivido na nossa casa durante muitos anos. Ninguém a esqueceu, foi alguém muito especial em nossas vidas.
      Minha mãe e as vizinhas resolveram arranjar um namorado para Comadre. Você precisa se casar. Diziam para ela. Ela ria muito e respondia: - Não tenho nenhuma vontade de me casar. Tanto fizeram, tanto arranjaram, tanto confabularam até que conseguiram que um rapaz fosse conhecer Comadre. Minha mãe pediu que ela ficasse muito bem arrumada para deixar o rapaz apaixonado por ela. Mas Comadre não precisava se arrumar porque já era muito bonita.
      Ao anoitecer, bateram à porta e minha mãe foi abrir, chamou a Comadre e fez as apresentações. O homem era muito esquisito e bem mais velho que ela. Comadre deu uma olhada nele e foi batendo no paletó dele na altura dos ombros e assoprando, tinha uma camada de poeira branca. Ele ficou meio sem graça e minha mãe convidou para ele sentar-se e mandou Comadre sentar ao lado dele para conversarem sobre o namoro. Crianças vão para o quarto agora, ordenou minha mãe. Comadre mais que depressa disse:- Deixe as crianças aqui, eu gosto muito delas. E foi sentando a gente entre eles. Depois de mais ou menos meia hora, a minha mãe chegou empunhando uma bandeja de café com bolo e biscoitos. Comadre já tinha despachado o infeliz.
      Comadre ficou mais ou menos dois meses em nossa casa, e foi um período muito bom e divertido.
     Acordamos num domingo, não vimos Comadre e a minha mãe passou o dia quieta, e quando perguntávamos pela Comadre ela começava a chorar. E nunca mais vimos à querida Comadre. Mesmo quando ficamos adultos a minha mãe nunca quis falar sobre o que aconteceu com Comadre.

 

 

 

 
Conto publicado no livro "Contos Fantásticos" - Junho de 2018