Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

Noite de fantasmas

 

Era uma noite. A noite dos Fantasmas! Coberto eu estava por um cobertor de Fantasmas que cutucam severa e violentamente a minha mente, aqui, como súdito da Rainha Leonor de Caldas reluzentes, começo minha nobre escrita. Como narrador desta fragmentada narrativa, sou obrigado a levantar-me de minha cama para acalmar os malvados Morcegos e Fantasmas que estão a voar em meu quarto quente e silencioso, embora muito frio e barulhento…
Um amontoado de signos abunda a sua cansada mente e exige serem ouvidos por este escrevente que almeja apenas dormir o seu honesto sono. Surgindo não sei de onde, os amontoados e embriagados signos querem ser libertos de suas prisões… E batem em minha porta exatamente em horário inoportuno...
Como camaleões e assaltantes da noite, dão ordens de todas as cores… Como gaviões, estão sedentos por vingança. Como viciados Fantasmas noturnos, transformam-se em fênix e querem atingir seus altos voos imaginários, exigindo desse melancólico escrevente que apenas escreva atentamente o que eles têm a dizer. Assim, peço, por gentileza, ao leitor distraído, magoado por sua errante travessia de transeunte amargo, que tenha a amabilidade de ouvir-me solitária e solidariamente, porque o escrevente é um homem que perdeu a sua identidade desde seu nascimento, logo após uma queda súbita que ele tivera em sua perdida infância esquecida… Mas quando se cai, levanta-se. Foi o que fiz. O que seria da vida senão fossem as quedas, a poesia depressa apodreceria e a prosa perderia o elemento mais sublimar de sua narrativa: a criação, fonte de vida que inspira homens e mulheres que se deixam ser tocados pela magia da palavra.
Dá-se início ao diálogo que eu não escolhi fazê-lo. Ele a mim escolheu. O primeiro Fantasma logo se apresenta, manifestando seu poder diante dos demais. Sou um Signo desgarrado e maltratado pela Vida. Perdi meus pais logo que nasci. Eles morreram para que eu pudesse surgir. Meu nome é Catástrofe. Faço parte da vida e existência de todos os vivos, mortos e ressuscitados signos que veem esse mundo por meio de lentes de múltiplas significações e múltiplas divisões de sentidos. Alguns tentam fugir de mim, mas não conseguem porque faço parte de suas vidas, de suas rotinas, como ferida inscrita em seus corpos. Assim preciso revelar ao cansado narrador, que é também fonte de minha morada e extensão de meus segredos não revelados. Dou ao mundo um caráter de equilíbrio, mas sou a iminente sombra que opostamente se faz presente. Vivo a criar paradoxos e oxímoros sem sentido porque eu sou o não-sentido do sentido que tantos filósofos buscam em suas inquietações. Também os literatos, da prosa à poesia, são meus maiores condutores, porque vivem a imaginar e, em vossas divagações, eu me faço de imagem dizível e não me exponho concretamente porque sou irrepresentável e de difícil compreensão e localização. Às vezes me pego pensando em mim mesmo quando, de repente, um escorrego me vem como alimento indispensável em minha forma de ser e estar. E é nesse escorrego que o discurso se anuncia. Dou-me como satisfeito em aqui me expressar como potente Signo em constante ação. Da gênese aos pergaminhos históricos da humanidade, faço vítimas por meio de guerras e conflitos humanos. Em mim está a essência da formação humana, a eterna contradição em forma de repetição e substituição de velhas “formas” que acabam também se tornando obsoletas… O novo já nasce velho porque, na realidade, nada existe de novo. Tudo é velho e catastroficamente construído para depressa ser corroído pelo oxigênio devorador e envelhecedor dos mansos e rebeldes homens que habitam a selvagem Terra dos dizeres, dos prazeres, dos discursos que expressam por meio de outros, embora velhos, mas ainda seguros em sua potência e invasiva reprodução.
Num rápido mergulho intertextual, emerge, das margens semânticas que separam o lado real do ficcional, outro Fantasma, que logo se anuncia… – Meu nome é Trauma. Tudo passa pela amiga Catástrofe, mas sem mim, nada podereis fazer. Sou a outra parte que é também difícil de ser vista porque, como a Dona Catástrofe, eu sou também invisível e indizível. Sou o elemento central e basilar que põe o mundo e as pessoas em pé, em ação... Quando um Signo está cansado de existir, cansado da sua longa viagem pelo tempo, entrega-se, sem forças para continuar a árdua travessia dos sentidos. Ele até pode desaparecer, mas renasce das cinzas, numa outra língua, num outro lugar. E, traumaticamente, todos os signos são submetidos a mim, pois todos lutam pela sobrevivência, querem ocupar um espaço e serem conhecidos e usados pelos homens que sempre acham um jeito inteligente de ser, principalmente os poetas, os romancistas, os contistas, os historiadores e os filósofos, de criar novos signos, enganando a si mesmo em sua repetida forma de narrar a história na voz sempre dos “vencedores”. Mas, há alguém que não gosto muito de sua presença, pois ela está sempre a perseguir com a sua inquestionável forma de ser! De repente, surge, não como Morcego ou Fênix, mas como um “Elefante gigante”, a pisar com sua forte potência, os pequenos e frágeis Signos da representação, a Dona Desconstrução que, interpelada por um conjunto de soldados armados para a luta, fazem grandes transformações quando estão bem unidos. Esse Fantasma vem em alta velocidade e em alta potência devoradora, com uma grande sede por novos sentidos, são roedores de estradas e amantes da ruptura e das divagações. Conseguem rapidamente mudar os paradigmas, mas nem percebem que o velho está sempre a rondar o novo. Desconstroem castelos que eram sólidos, e esses saem de cena, prometendo, um dia, retornar, nem que sejam em forma de um novo nome que esconde sua velha identidade. Não é à toa que são Fantasmas…
O poder do maior dos Fantasmas, regido por uma fonte inesgotável de estar presente no passado, estando também presente no presente e se transformando muito naquilo que os homens definem como futuro, é anunciado pelo Fantasma Espaço, lugar onde os Signos entram em lutas, acertos e acordos semânticos, o Senhor Tempo, o implacável Fantasma que faz as coisas e os homens “enferrujarem-se”. Envelhecendo, tornam-se potentes, mas, ao mesmo tempo, impotentes. O Sr. Tempo é catastrófico, por natureza. Por mais que ele tente amenizar a situação dos milhares de Signos vivos e em ação, seja para o bem ou para o mal, há sempre algo que escorrega de si, numa rápida movência, transformando lugares, homens e sentimentos, discursos, culturas e representações. Ele ajuda a cicatrizar as feridas da humanidade, mas não a impede de entrar em conflito porque o Sr. Conflito, Fantasma operante e assíduo nas reuniões entre os humanos na Terra, sempre ameaça um ali, outro acolá… Às vezes é vencido por um Fantasma bastante conhecido como Integração. Integração é um Fantasma Signo que trabalha muito. Apresenta-se em todos os lugares, impedindo que os países entrem em guerra ou as pessoas entre si, dentro de si mesmas. Com a ajuda de outros aliados, como os Fantasmas União, Respeito, Harmonia e Prudência que acabam de chegar no recinto, acompanhados de outros milhares de Fantasmas que gostariam, também, de serem ouvidos, esse narrador, frágil escrevente, reage ao Caos que estava prestes a ser estabelecido. Eu, o avistei, com o seu mover, vindo em minha direção. Percebi que outros amigos de Catástrofe estavam também a chegar. Eram muitos, mas eu pude observar, de lado, um Fantasma que vinha com uma agitada ferocidade, e, se eu não fosse o narrador esperto dessa narrativa, ele me tomaria toda a noite. Era a Senhora Solidão, acompanhada de seus dois inseparáveis amigos, o Fantasma Angústia e seu aliado Ansiedade. Vivem a rondar muitos na Terra, juntamente com o seu parceiro, o Sr. Fantasma Depressão. São Fantasmas que estão sempre presentes na vida de homens e mulheres que não se socializam, são ambiciosos e capitalistas. A maioria, políticos, religiosos e comerciantes mercenários. Presas fáceis desses Fantasmas que, nesse momento de diálogo quase que infindável, são impedidos de se fazerem presentes por este humilde narrador, que muitos o conhece com o nome de Improvisação. O Fantasma Gratidão veio à frente dos demais e, num sorriso multiplicado pela satisfação dos Fantasmas presentes, em nome da Interrupção, que também chega ao seu lado, amavelmente agradece-me por eu ter dado espaço ao diálogo, e decreta: “Está encerrada a reunião! Por hoje, basta!
Esse cansado narrador se despede de todos os Fantasmas, reconhecendo que seu dever foi cumprido. Agora posso voltar à cama e dormir o justo sono do amante das palavras, sabendo que, em sonho, essa história continuará em ação…

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Contos Urbanos" - Abril de 2018