José Brites-Neto
Sumaré / SP

 

 

A paca e o veado

 

Acho que minhas melhores e mais significativas histórias profissionais ficaram na Amazônia. A minha principiante e marcante experiência teve encontro com essa região, despertando uma grande paixão. Tempo bom de extensão universitária, em que aguardávamos com ansiedade a inclusão de nosso nome na lista dos acadêmicos selecionados para a misteriosa aventura em terras distantes do Campus Avançado do Projeto Rondon.
Era o inverno carioca do ano de 1983, quando fui selecionado na turma de veterinários para compor a lista profissional que viajaria para a cidade de Macapá, no Território Federal do Amapá. 
Embarcamos em um pequeno avião de passageiros da FAB com aquela adrenalina sensitiva de quem parte para uma importante e desconhecida missão; e muitos de nossos parentes se despediam orgulhosos com a nossa manifesta coragem e determinação. Chegamos ao destino (na verdade uma pequena pista de pouso da aeronáutica, na época), sendo recebidos sempre com o largo sorriso amazônico, e fomos conduzidos em um velho ônibus até à sede do projeto.
Logo ao descer, o administrador que nos recebia já solicitava que os veterinários já acomodassem seus pertences nos alojamentos e descessem para a sala de atendimento, visando socorrer várias emergências clínicas. Realmente, já ficamos curiosos com uma enorme fila (como de hospitais da rede pública) que se apresentava em um setor da sede, aonde avistávamos pessoas com galinhas, cães, gatos desde os domésticos até jaguatiricas, cutias, pacas, veados mateiros, macacos, cabras, aves silvestres, entre tantos outros animais de espécies exóticas e distintas para os jovens acadêmicos urbanos de veterinária.
A turma anterior tinha interrompido as atividades para retornar, duas horas antes de embarcarem; então precisávamos atender a demanda que já se acumulava, rapidamente. Assim o fizemos, e um fato marcante me deixou marcas eternas nesse episódio, em memória e de forma física. Dentre os animais que atendemos me deparei pela primeira vez na vida com uma paca (Agouti paca) que foi colocada em minha mesa totalmente rígida e com um trismo maxilar intenso, me fazendo suspeitar de alguma tetania, mas sem qualquer ferimento e sem muita informação fornecida pelo caboclo. E agora, José? José para onde? Ou melhor, por onde começar? Batimentos cardíacos acelerados, olhos vidrados. Não, seu dotô, ela tem os zóio assim memo! Lá eu sabia que esses mamíferos eram noctívagos! E agora seu dotô? Tinha que fazer algo para impressionar. Resolvi então, tentar abrir a boca do animal para uma inspeção. Ao tentar abri-la com a ajuda do caboclo, meu dedo escorregou para dentro e os dentes incisivos do roedor cortaram a extremidade do meu dedo indicador e foi sangue para todo lado.
É lógico que além de constrangido comecei a ficar nervoso com tanto sangue, e como não tinha sequer me alimentado depois da longa viagem, comecei a me sentir meio zonzo e minha vista escureceu. Só fui acordar mais tarde no Hospital Geral de Macapá, com alguns colegas, além da figura do administrador do campus ao meu lado, todos extremamente preocupados.
Logo me chega o médico sorridente, me perguntando se estava melhor, e foi quando verifiquei que estava com um acesso venoso e tomando um bom frasco de soro glicosado. Então o médico explicou que havia tido uma crise de hipoglicemia, por indução adrenérgica, ao ser mordido pela "paquinha". Ao que os funcionários e enfermeiros presentes começaram a dar boas gargalhadas; e o assunto logo correu. Veterinário mordido por paca desmaia na cidade. Constrangido, somente depois fui cientificado que "paca" também era o nome vulgar regional para a genitália humana feminina.
Após o episódio da paquinha de Macapá, na rotina esfuziante e apaixonante de atividades do Campus, deparei-me com outra situação bem pitoresca, sem mesmo ter plenos conhecimentos em ortopedia cirúrgica em animais domésticos, com um caso que muito nos emocionou.
Chegava ao ambulatório, um menino (verdadeiro curumim) com um filhote de veado mateiro (Mazama americana) com fratura completa, exposta em bisel, solicitando socorro urgente. Nunca tinha feito uma redução cirúrgica de fratura ainda, mas nesses momentos éramos "o seu dotô veterinário" que salvava animais.
O garoto me olhava com seu olhar marejado e perguntando: "Salva meu bichinho, dotô". Então juntamente com o outro colega, pegamos um frasco de xylazina (era só o que tinha por lá), sedamos o animalzinho, limpamos bem o ferimento e fizemos a única coisa possível de se fazer com os recursos existentes. Uma cerclagem com fio metálico improvisado na porção medial do fêmur. Reconstituímos os tecidos musculares lesionados e colocamos uma cadeia de pérolas de antibiótico internamente no ferimento abaixo das linhas de sutura, conseguida junto ao hospital geral de Macapá e por conta do cômico incidente da paquinha.
Logicamente que o nosso prognóstico era reservadíssimo. Achamos inclusive, pelas condições de higiene locais, que poderíamos estar diante de uma inevitável infecção que, ou determinaria uma necessária amputação do membro afetado ou complicaria com uma septicemia levando à morte do animal.
Passada a angústia de um pós-operatório muito limitado e difícil, qual não foi a nossa surpresa em ver aquele veadinho recuperado, ainda trôpego, mas saltitante ao largo daquele menino sorridente em sua inocente, natural e bela alegria amazônica. Nessa hora, ao sermos presenteados pelo pai do garoto com um belo cocar, foi que entendemos a dispensabilidade do vil metal em nossas vidas, diante do bem-estar com que podemos contribuir para a homeostase ecológica do homem em seu meio.
Hoje, mais de trinta anos após, é que começamos a entender melhor isso sob o nome de epigenética. Ainda mais quando a entrega desse presente ocorre sob uma cerimônia ritualizada, desconhecida do perfil de jovens urbanos sulistas, e que depreendia em seu objetivo alguma forma condecorativa para os sinceros nativos. Quanta honra desmedida para jovens brancos ditos civilizados!

 

 

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Data venia!... E tenho dito!" - Contos - Março de 2018