Beatriz Brandt Weiser
Florianópolis / SC

 

Aquele senhor do trem das sete

 

          

    

A lógica não contempla às exigências de compreensão de tudo o que acontece. Aprendi isso há alguns anos, logo que cheguei em Viena, em julho de 2004.

O fato que vou narrar aconteceu na estação de Hietzing, numa rara manhã de sol.

Esperava o trem das sete, para Tulln (eu começaria a trabalhar naquele dia) quando notei a chegada um senhor, não muito idoso – aparentava uns cinquenta e cinco, sessenta anos, andar meio descompassado, trajando um terno cinza que parecia ser de outro dono, bem maior e bem mais gordo, e com uma imensa pasta de couro nas mãos, daquelas que os estudantes usavam no Brasil nos idos de 1970, quando eu cursava o primário, em Porto Alegre. Ele também ia para Tulln, e acabamos viajando no mesmo vagão, poltronas lado a lado.

Não lembro exatamente como ou por que começamos a conversar. Mas lembro que em menos de dez minutos ele já me parecia íntimo, era divertido, carinhoso, inteligente. Apresentou-se como Jerzy, disse que era polonês e estava na Austria, de passagem, para resolver um problema urgente. Mas que naquele dia mesmo voltaria para Bochnia.

Ao descermos, meia hora depois, em Tulln, ele se despediu dizendo que nos encontraríamos ainda naquele dia, perto da Fontana. E se foi.

Não entendi o que ele quis dizer com aquele "vamos nos encontrar hoje ainda, perto da Fontana", mesmo porque eu nem sabia que Fontana era essa. Segui, então, para o meu novo emprego, deveria estar lá às oito em ponto.

...

Saí da fábrica às quatro da tarde e aceitei a carona do meu chefe que, sabendo que eu não conhecia nada na cidade, se prontificou a me deixar na estação ferroviária. Só que, logo ao cruzarmos o portão da fábrica, ele me perguntou se eu gostaria de conhecer a Fontana de Tulln, que seria rápido, não perderíamos mais de cinco minutos. Neste momento lembrei do Jerzy... Achei estranho aquele convite mas concordei em ir até lá.

Ao nos aproximarmos da tal Fontana – um chafariz numa pequena praça ajardinada -, eis que de longe vejo Jerzy, em pé, como se estivesse esperando por alguém. Ao ver nosso carro se aproximando, a uns cem metros, Jerzy desce até a calçada e faz sinal para o carro parar. "Como ele sabe que eu estou neste carro?"

Meu chefe também não entendeu o sinal para parar mas notou minha surpresa e perguntou se eu conhecia aquele homem. Eu respondi que sim. Jerzy, então, abriu a porta do carro e disse com certa autoridade: "- Estava esperando você! Vamos, preciso fazer o meu trabalho!"

Eu lembro que desci, acompanhei Jerzy por uns dois quarteirões, a pé. Ele falava sobre destino, sobre mudança de decisões, coisas desse tipo e que eu não conseguia entender bem. Mas era certo que ele me despertava uma confiança sem limites.

Logo pegamos um táxi e ele pediu ao motorista que seguisse para a estação ferroviária. Lá ele me deixou, e se despediu me dizendo, simplesmente, "Vai com Deus!"

No dia seguinte, ao chegar a estação de Hietzing para pegar novamente o trem das sete, vejo um jornal estampado na banca com a seguinte manchete: "Acidente na ponte mata engenheiro em Tulln an der Donau". Era o meu chefe. O acidente ocorreu dez minutos depois que ele deixou na Fontana.

 

 

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Data venia!... E tenho dito!" - Contos - Março de 2018