Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

 

Vida privada

 

          Era bom, nas noites de inverno, sentadas na sala aconchegante, ouvir Alice falar. Ela tinha uma voz pausada e melodiosa que podia entediar as pessoas, mas que a mim me agradava. Alice, amiga de muitos invernos, saiu da minha vida como um furacão. Certo dia, ela não acordou e eu me senti injustamente abandonada, presa às suas histórias de vida, querendo, a todo custo, que outras pessoas também as conhecessem.
          Alice dizia:
          -Não sei se foi minha família, a escola católica onde estudei, o meu casamento ou a própria religião que me fez uma pessoa tão conformada diante das diversas situações de vida, que hoje vistas lá atrás, sinto que deveria ter me rebelado e lutado para alçar voos, empreender, mostrar minhas próprias opiniões, enfim viver sem amarras.
          Vendo hoje os lares tão abertos aos filhos a ponto de todo limite ser desconsiderado, sinto que o meu lar era um paraíso fechado. Eu via chegar um sonho e passar, outro e passar. E assim desfiava à minha frente o enterro das ilusões mais queridas, tornando-as desilusões amargas. Tudo o que eu queria ou almejava ficava contido em mim mesma. Aceitava com um sorriso o que me davam. Eu tive uma vontade imensa de cursar determinada faculdade e não a cursei. Não tinha coragem de demonstrar meus desejos.
          Estudei num colégio católico que formava e informava bem. Fui boa aluna. Dentre outras, aceitava as aulas de Religião como um catecismo para a minha vida. Lembro-me do último dia de um retiro espiritual, que acontecia todo ano, quando o Padre celebrou uma missa e nos abençoou concedendo-nos indulgências plenárias. Uma religiosa nos disse que se morrêssemos naquele dia iríamos direto para o céu. Nem no purgatório passaríamos. Meu Deus! Como desejei morrer naquele dia. Era um desejo tão intenso que eu acho que se Deus me quisesse indo direto para o céu, hoje eu não estaria aqui em sua companhia.
          Casei-me cedo. Acho mesmo que o primeiro que se interessou por mim pra valer, me levou. Nunca fui completamente apaixonada. Via nesta pessoa que demonstrava me querer muito, um meio de tentar construir uma vida mais independente. Puro engano. Eu era muito fraca para me libertar. Na vida a dois as amarras eram diferentes, mas existiam. O dia a dia de convivência me deixava muitas vezes decepcionada. Não era exatamente aquilo que eu queria. Aguentei firme, como era de costume, até que ele partiu. Aí eu chorei. Não sua partida, mas o que poderíamos ter vivido.
          A religião me perseguiu por toda a vida. Quando criança rezava porque meus pais rezavam. Quando adolescente, rezava para eu conseguir o que queria ser. Quando jovem, rezava para que não me acontecesse nada de ruim. Quando adulta, rezava para agradecer tudo o que eu havia conquistado, apesar de achar que era pouco. Só que este pouco certamente era o que eu merecia. Quando mais velha me sentia culpada de duvidar e não aceitar algumas práticas religiosas. Eu não queria contar os meus pecados ao padre. Eu encontrava explicação própria para o Mistério da Santíssima Trindade. Deus me perdoe, mas a transubstanciação não me ganhava. Por que não dizer que os padres apenas repetiam, para relembrar, o ato de Jesus na última ceia? E a virgindade de Maria... Como aceitar que o ato de união para o surgimento de uma nova e santa vida pudesse desmerecer a santidade da mãe de Jesus? Abandonei um pouco o costume de rezar e me foquei na prática do bem, sem dar muita importância para os dogmas religiosos.
          A verdade é que, durante toda a minha vida, dei a tapa uma cara que não refletia a minha alma. As pessoas geralmente achavam que eu era feliz. Se elas achavam eu penso que devo ter sido mesmo. A minha mente é que é conturbada.
          ...Ouvi estes relatos de Alice várias vezes. Não sei se ela gostaria de vê-los tão expostos. A verdade é que uma vez eu sugeri escrevê-los, ao que ela falou: - Só depois de morta e assim mesmo, mude o meu nome.

 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Painel de Contos Premiados" - Outubro de 2017