Rubens Alves Ferreira
Taguatinga / DF

 

 

Dominique

 

 

A mulher Selma, e os filhos Joãozinho e Maria foram para uma festa junina na fazenda do cunhado dela. Bispo ficou em casa sozinho; sozinho com a Tica e sua outra companheira do momento – a garrafa –. Entre goles aqui, beliscadas ali; televisão, livros, computador e alguma atenção mútua – não se sabe por qual motivo, talvez só aqueles que bebum enxerga – logo aconteceu um desentendimento entre os dois. Com a garrafa não, que ainda estava pela metade e cumpria bem o seu papel, sem dizer nada, além da insuflação normal. O desentendimento evoluiu para troca de desaforos e perseguições, a raiva dele foi aumentando; e dobrou, quando tentando se defender, ela o arranhou na mão. Aí a correria ficou maluca, até a garrafa ficou largada, coitadinha. Era cabo de vassoura, sandália, e o que estivesse à mão – mas não se preocupem, a Tica estava sóbria e muito mais esperta – Nisso o telefone toca. “alô!?” ele atende. Do outro lado:
– Oh Bispo! Que foi que fizemos para você? O que foi que eu fiz que não vem mais aqui?
– Nada. – rebate Bispo ouvindo alguém perguntar, “é o Zeca?” – “não. É o Bispo.” – “dá aqui o telefone, me deixa falar com ele.” – “Oi Caburé! Você não vem pôh? Só falta você aqui. Estamos esperando heim!” – intimou o Bina que depois passou o telefone para o Jaburu:
 – fala cabra! O que você está fazendo aí sozinho? Vem pra cá moço!
– oh Jaburu! beleza? – e depois reclama do Bina – “olha, esse seu amigo vendeu um carro para um chapa meu e o carango estava cheio de lixo, bugigangas que devem estar perdidas e desaparecidas há anos; até um rato saiu correndo e tivemos que caça-lo”. – Deu um suspiro e completou – só não diz nada para ele, senão vai querer cobrar a mais. Sem contar que o carro acabou na polícia especializada por denúncia de furto.
 – Falou! Estamos aguardando aqui, heim!  Bina é o “cara”, cê já sabe, vai esperar o quê?
– Até! – despediu-se o Bispo e depois ficou olhando para o vazio. – onde foi que eu parei? Aí fez uma breve reflexão sobre o Bina.
Bina era o apelido de um amigo da turma que tinha o poder da adivinhação; entre elas, estava a capacidade de adivinhar quem estava chamando ao telefone (tal como o aparelho: B Identifica o Número de A). Quando o telefone tocava, ele logo intuía, “é a Joana?” – alguém respondia “não. É o Marcos”. Daí a pouco tocava de novo e ele, “é o Marcos de novo!?” – outra pessoa atendia e taxava, “não. É a Joana”. Essa mesma habilidade, o Bina usava para jogar nas loterias; depois de ter feito o mesmo em vestibulares e concursos. Bina vivia de bicos; não dispensava um 0800 e era conhecido como “serrador”. Nas peladas – lá pelo balneário da cachoeira do Itiquira, em Formosa de Goiás – quando terminava a peleja, e todos iam discutir o jogo tomando umas geladas, ele deixava todo mundo pasmo; quando sem mais nem menos, abordava uma mesa e perguntava aos ocupantes: “vocês ainda vão comer?” – perguntava apontando para a travessa de tira-gostos. Depois da vergonha e saia justa geral, todo mundo comia e acabava pedindo mais – dessa vez, comprando. Depois dessas divagações, lembrou-se da Dominique.
 Retomando o embate Nick X Bispo; entre corridas para o quintal e a mudança constante de cômodos da casa, ela conseguiu se enfurnar em um dos quartos, com o coração acelerado tal qual passarinho e a cara transtornada. Não adiantou. Foi desenfurnada do seu recanto e teve o corretivo aplicado e supostamente merecido (caso típico de Maria ou José da Penha). Depois ficou a um canto, assustada e desconfiada; mas dessa vez sossegada. êtah! homem bruto esse Bispo. Bem que a vizinhança poderia ter acionado a polícia.
 A Tica, apesar dos desentendimentos, gostava e tinha o Bispo em alta consideração. Era a primeira a comparecer ao portão quando o Bispo chegava. Todos achavam graça quando ela deitada com o queixo apoiado nas “mãos”, ficava assistindo às aulas que a menina, filha do Bispo, dava para ela e outros alunos imaginários em seu quadro verde. A Tica era toda atenção e ficava sujeita às broncas e palmatória da professora. Quando o Bispo não estava com bons nervos, ela ficava discretamente à parte. Não lhe era permitido grandes intimidades pelo interior da casa; mas quando havia visitas, ela toda faceira, acompanhava todo mundo e ia adentrando toda requebrante, até ser descoberta e com um olhar, recolocada em seu lugar.
No portão gostava de implicar com os transeuntes e sempre tinha que ser chamada a atenção. Gostava de ser bem tratada; mas também não forçava a barra. Ficava perfeitamente distraída pelo quintal, varanda ou sentada, deitada, observando os acontecimentos.
Bispo, após, e muito tempo depois, ainda guardava um sentimento de culpa crônico; principalmente porque devido aos maus tratos e à mudança de residência, tiveram que se separar. A família foi para um lado; e ela – a Tica – foi para outro, em uma casa de parentes que aceitou acolhê-la – só que ela escafedeu-se -.  Uma vez Bispo brincou com ela e com todos sobre sua possível venda. Chegou até a providenciar um anúncio onde se lia: vende-se uma excelente e linda cadelinha de raça*por motivo de mudança. Preço de ocasião. Grátis, um pacote de ração para gato, uma coleira sem uso, cartão de vacina em branco e um vale da “Happy pet”.  
Abaixo no rodapé e em letras minúsculas:

*de raça desconhecida. Nome: Dominique. Apelidos: Nick e Tica.

 

 
Poema publicado no livro "Mutretas, Xavecos e Pilantragens" - Contos - Janeiro de 2018