José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

 

O diário Epicuri

 

           

          - Estás doente? - Levantei da carteira e vi um senhor desconhecido com vestes dos antigos padres. Pensei: “talvez seja um novo professor”.         
         - Minha alma adoece de tédio - eu disse com os olhos ofuscados, mas ele silenciou.
          Desabafar meus dramas a um estranho? Não! Seria como abrir novos sangramentos. Desci com ele pela escada de madeira. Por mais que doesse, eu não conseguia falar sobre o meu diário.
          Na fase dos dramas descobri que eu era uma dualidade, como se duas almas opostas se enfrentassem nas cavernas do meu cérebro. Eram as duas faces de minha alma: o “eu luz” versus o “eu trevas”. Meus registros se alternavam entre o bem e o mau. Enquanto o “eu luz” impunha limites o “eu trevas” se entregava aos estímulos sem lei.
          Viver nos sonhos da outra vida era tão excitante, que se fosse possível eu morreria nesta vida para acordar dentro das minhas fantasias, até desvairar de prazer. Enquanto na vida real era obrigado a encenar uma falsa normalidade, à noite abria meu diário e libertava a fúria da minha fera faminta. Aos poucos o “eu luz” foi perdendo para o “eu trevas”, revidando insultos, resolvendo as desavenças com violência, trocando o perdão pela vingança, a pureza da mulher pelo delírio dos sentidos. Passei a amar a outra vida, ao ponto de não mais precisar do diário de papel para me sentir dentro dela. Num segundo me transportava e me deliciava no mundo sombrio. Quando as pessoas se veem em dramas, nem precisam de um diário de papel, criam mentalmente páginas de horrores: ocultas páginas!
          Meu diário era cheio de manchas e o arrependimento começou a pesar, parar com as anotações parecia a solução para dar fim àquilo, mas eu estava ajustado à outra vida. Não raro eram as situações em que não decifrava em que mundo certos fatos aconteciam: se era real ou imaginação. Temia não conseguir manter fechada a porta que separa as duas realidades, e tudo que existisse na minha outra vida eu viesse a praticar na realidade terrena.  
          Na angústia, decidi mostrar o diário para Deus. Mas, onde está Deus? Dizem que em todo lugar. Todo lugar era vago demais, eu precisava de um local solene. Uma igreja? Há milhares com doutrinas distintas. Lembrei de que Jesus gostava das montanhas.
          Quando descíamos pela escada subitamente a voz do padre me assustou:
          -  Não precisamos viver no passado, o sábio a cada dia faz um novo começo.
          Acho que ele lia meus pensamentos, mas eu não tinha o menor interesse em ouvi-lo, pois meu problema era obter uma resposta de Deus. Eu continuei a descer.
          Naquela manhã faltei o trabalho para subir na mais bela colina da cidade, tirei meu diário da mochila e deixei-o no chão, ao término de uma oração vi as folhas sendo viradas, uma a uma, por uma brisa misteriosa. Creio que era Deus lendo!   
         O dia foi tenso a espera de uma resposta de Deus, que não veio, ao menos como esperava. Nas aulas da noite eu só pensava na experiência com Deus.
         Ao estar frente à porta de saída do colégio virei para me despedir do padre, mas ele tinha sumido. Senti medo quando vi numa das paredes o retrato do patrono do colégio morto há anos: era o Regente Antônio Diogo Feijó. Pasmei porque era o mesmo padre que falava comigo.
          Sobre a visita do padre ainda hoje me pergunto: não sei se foi real, ou fantasia do meu diário, ou se foi uma resposta de Deus.

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Pé de pato, mangalô, três vezes!!!"- Edição Especial - Junho de 2017