André Luiz Rodrigues Pinto
São João da Barra / RJ

 

 

Muito moinho para pouco Dom

 

Atafona é uma espécie de moinho de vento para triturar grãos levado à Península Ibérica pelos Mouros e que o Portugueses trouxeram para o Brasil, no período colonial. Também é nome de uma linda localidade no Norte Fluminense, no 2º Distrito da cidade de São João da Barra, onde o rio Paraíba do Sul se encontra com o mar. É um local místico, bucólico e também muito sinistro por sinal - dizem conter sinais apocalípticos. Atafona vem do termo "Attahuna", que na língua árabe, quer dizer moinho. No Banto Africano, "Atafona" significa o ato de moer, triturar, mastigar. Mas é da Atafona localidade e de seu personagem que irei relatar um fato muito estranho que aconteceu por lá há algum tempo atrás.
Soprado fortemente pelo vento nordeste, as dunas da localidade de Atafona ganham vida e se movimentam em direção às casuarinas invadindo as casas de veranistas e moradores fixos da praia.  Ah, se as dunas falassem! Há na localidade o conhecido fenômeno de erosão costeira que já engoliu quatorze quarteirões, dentro destes,  posto de gasolina, estaleiros, cooperativa de pescadores e várias residências. Também na década de 1970, houve um conjunto de aparições luminosas que pairaram sobre o manguezal da comunidade de pesca e que deixou todo mundo meio "fora de eixo" por alguns instantes. Neste período também nasceu o "Dom", bem na foz, local que sem dúvidas, mesmo com os riscos e mistérios, foi amado por este sonhador, o nosso "Quixote" deste conto.
Dominique ou "Dom" para seus conhecidos, era um de seus moradores mais populares. Dava uma de sabe tudo e quando, de bar em bar, peregrinava a contar seus "causos" e aventuras amorosas, conseguia a atenção e aplausos dos boêmios que acabavam por lhe pagar dezenas de drinques "rabos-de-galo". O cara tinha lábia, tinha pegada, tinha estilo praiano mesmo. Foi criado naquela foz desde menino, aprendendo a sobreviver nas dificuldades do dia a dia, ora pescando, ora catando caranguejo no manguezal da Moça Bonita ou cantando serestas ao violão nas palafitas vizinhas à frequentadíssima casa de luz vermelha que, intrigantemente, ficava nas proximidades da capelinha de Nossa Senhora dos Navegantes. Era devoto de Nossa Senhora da Penha, mas participava das oferendas à Iemanjá, na passagem de ano novo. Comia peixes, aves silvestres e até ovos de tartarugas marinhas.
As espumantes ondas da madrugada inspiravam "Dom". O clarão da lua cheia a refletir no oceano, o silêncio invernal do Balneário, o encontro do rio com o mar também inspiravam o galã. Mas era no verão que "Dom" dava seus pulos-de-gato, seus mais atrevidos botes nas presas-fêmeas que apareciam na praia para passarem a temporada bronzeante no balneário da saúde. Morava sozinho num resto de casa tomada pelo mar. Via as ondas baterem à sua porta todas as manhãs. Tinha uma casa-metade, pode-se dizer, mas se sentia inteiro, por completo quando saía e dava de cara com as dunas.
Aquele verão que entrava foi diferente para "Dom". A chegada daquela galega "boazuda", descendo no ponto final do Hotel do Julinho, fez com que ele ficasse vidrado em tê-la na sua coleção de "peguetes" e já imaginava o que poderia contar no futuro, para os seus comparsas boêmios que ocupavam as mesas de jogos das palafitas da foz. "Vou investir", afirmou "Dom" para si mesmo.
Depois de uns dias observando a bela moça, que não falava nada em português, descobrira ele que ela era proveniente da Holanda e ficara hospedada numa das pensões da localidade. Não era problema algum pois ele sabia se virar. Em outros tempos já havia gesticulado com uma americana que permaneceu uns quinze dias na foz e tinha se dado bem. Muito bem, por sinal.
Passada uma semana, "Dom" já estava íntimo da holandesa, uma bela mulher de curvas esculturais, cabelos loiros e olhos azuis bem acentuados e que achou no "Dom" uma companhia agradável e engraçada para lhe apresentar o local. O povo de Atafona sempre foi muito hospitaleiro com turistas. Era praia todo o dia pela manhã e à tarde iam passear à cavalo pelas dunas e áreas de restinga das imediações. Provavam pitangas, coquinhos guriri, mandacarus, apertas, grumixamas e outras frutas da restinga. Goles de salsinha-da-praia e pau-pereira (ervas com cachaça), foram apreciadas. Chegaram a tomar banho no manguezal da Ilha da Convivência, que ficava de frente à Foz, em Atafona, onde fizeram a travessia de canoa à remo com a companhia aérea dos pássaros migratórios trinta-réis. Tinha ar de amizade, mas o "Dom" queria mais.
Faltando poucos dias para a holandesa ir embora, "Dom" já estava desesperado para dar o "Bote" na galega, mas não conseguia de jeito algum. Depois de algumas infrutíferas tentativas, onde a holandesa se fez de boba, "Dom" consegue convencê-la a visitar durante à noite a sua casa-metade de frente para o mar. Fez todo o preparativo da recepção, tirou a poeira do cômodo, jogou balde d`água do mar no piso hidráulico gasto pelo tempo para ficar bem  limpinho e reservou umas velas em locais especiais do casebre, para ter um clima romântico, mesmo que rústico. "Dom" não tinha luz elétrica em casa. Era noite de lua, o nordeste soprava bem forte. "Dom" tinha uma espécie de moinho de vento na entrada da casa que girava dioturnamente.  Limpou bastante este moinho para impressionar a gringa. Era uma espécie de ponto de referência da praia, depois, claro, do imenso farol. Aguardou ansioso o momento.
A loira,  rosada do sol, chegara no horário marcado com um garrafão de vinho tinto, um belo vestido branco "tomara que caia" de finas  rendinhas e um lindo sorriso na face. Deu boa-noite e começaram a beber. "Dom" tocou violão para a moça e juntos entornaram muitos copos de vinho, sob muitas risadas e carícias, até que ambos adormeceram nos braços de Morfeu sob as energias monazíticas do famoso Pontal de Atafona.
O dia amanheceu com as ondas fortes batendo em restos de construções desabadas. Uma multidão de moradores, em sua maioria pescadores locais, estava por volta ao casebre de "Dom", em oração. A casa-metade não era mais nem metade, pois o mar e o vento nordeste haviam consumido as suas estruturas. O que aconteceu ao casal? O conquistador "Dom" nunca fora encontrado por debaixo daqueles escombros. Houve também uma varredura até pelo mar, pela Capitania dos Portos, e nada foi encontrado.
O curioso é que ninguém soube da existência desta holandesa na praia naquele verão. Pouco depois acharam boiando, dentro de uma garrafa de rolha de vinho tinto, empurrada pelas ondas da praia, um pedaço de papel de cartela de cigarros com escritos no verso que mencionavam os amores de "Dom" por tal holandesa desconhecida, num esboço de sua escrita em letra de música rascunhada. Por incrível que pareça, a única coisa que permaneceu da ressacada do mar e o vento da foz do Paraíba do sul  relativo ao casebre, foi o moinho de vento, de pé, a rodar suas pás sem parar, como se fosse um marco de lembrança de mais uma dessas histórias que não conseguimos entender, sequer explicar aos outros o que aconteceu por final.
Alguns boêmios, ainda hoje, acreditam e chegam a dizer pelos bares de Atafona, quando indagados da história, que : "Foi maldição pirata", "Foi sequestrado por extraterrestres" ou "Foi muito moinho para pouco "Dom".        

 

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Muito moinho pra pouco Quixote" - Contos - fevereiro de 2018