Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

 

Soluços à meia-noite

 

            

Fim de dia, um frio danado, a capa de chuva orvalhada de pepitas branquinhas. A pionada busca o galpão, onde o fogo está crepitando. O chimarrão já está pronto.
Na panela de ferro a galinha vai sendo cozida para um carreteiro gostoso e substancioso. Depois de um dia inteiro de trabalho no campo, a fome está grande.
Todos vão se sentando ao redor do brasido. Puxam os banquinhos, esfregam as mãos geladas e a conversa começa a rolar. Diz um dos peões:
- Vocês viram aquele rancho caindo os pedaços? Aquele que está lá pros lados da pedreira. Quase escondido. É depois que agente passa o monjolo, ainda há um pequeno sinal da trilha que existia por entre as macegas. Dizem que em noite de lua cheia ainda se ouve uns gemidos, uns soluços sufocados, e o estalar de chicote.
-Também o que foi feito no local ... Diz um deles.
Tempos atrás, alguns fazendeiros, eram homens sem muita cultura, criados só nas lidas com o gado, eram quase uns selvagens e o que acreditavam era a sua Lei. Não importava a opinião ou os rogos de outros.
Quando cismavam com alguma coisa ...
O Senhor de todas essas terras que se perdem de vista, de onde estão os confins dela, era um daqueles que achava que o que existia era para satisfazer as suas vontades. 
Mas a moça bonita foi cobiçada pelo Senhor Fazendeiro.
Uma tarde, enquanto as senhoras e, as crianças faziam a sesta, o fazendeiro ficou na cozinha e, pediu a ela um chimarrão.  
Quando a cuia foi alcançada, ele tentou segurar a sua mão. E, ainda ouviu, com tamanha surpresa. 
- Você é muito bonita para ser só do João, o capataz. Quero você pra mim também.
Ficou ela muda diante de tamanha surpresa. 
- Hoje à noite te espero lá na casa da Escola.  E, não pense em fugir de mim.
Atordoada, ela saiu correndo da cozinha. Como contar? Como pedir ajuda?  No galpão encontrou com o João. 
Perguntou ele:
-  O que você tem? Está branca, como roupa alvejada?
Achegou-se nos braços do bem amado e chorou muito.
- Não estou bem. Foi para casa. Uma casa pequenininha feita próximo da casa grande. A mãe lhe fez um chá.
- Você está pálida e gelada minha filha. Não vá ficar doente antes do casamento. Os preparativos já estão em andamento.
A mãe da moça foi até a casa grande e contou à Senhora que a filha não estava passando bem.. . Estava acamada.
A moça ainda ouviu uns gracejos. Nem se casaram  ainda e já andou por aí...
A mãe da moça termina o serviço da filha e voltou pra casa. A pobre moça estava apavorada. Conforme a tarde ia caindo ela foi ficando febril.
Foi preciso chamar o Nego Tião que fazia uns remédios. Ele medicou a moça e recomendou repouso por três dias. Os fazendeiros foram avisados.
Quando anoiteceu a moça espiou pela fresta da janela e enxergou a luz do lampião na sala da escola. O seu corpo de virgem estremeceu todo. Como vou me livrar desse Senhor asqueroso?
No final do outro dia recebeu a visita do Fazendeiro. Disse ele:
- Trate de sarar e depressa, pois estou te esperando. E, não tentes me enganar.
Ela, então pediu ajuda ao noivo querido. Resolveram fugir antes da meia-noite, aproveitando a escuridão. 
Encilharam o cavalo, pegaram uns poucos pertences e fugiram. Os cachorros nem latiram, pois estavam acostumados com as saídas do capataz para ir atrás de uma rês machucada ou extraviada.
Pensavam eles estarem seguros. Todos dormiam. Menos o fazendeiro que louco de desejos estava acordado e ouviu o tropel do cavalo.
- Eles me pagam. O que estão pensando?!...
Vestiu-se depressa e pegou a sua garrucha, o cavalo que pastava mansamente em volta da Casa Grande. Chamou um peão e mandou encilhar o animal e, depois ir dormir novamente nos pelegos, em volta do fogo do galpão. Ainda com  a arma apontada disse:
- Você não viu nada e não tente me seguir.
O pobre peão ficou gelado até na alma. Ele tinha percebido o moço saindo, a jovem esperando-o embaixo do pé de cinamomo. 
Fez uma prece pedindo ao Patrão dos Céus clemência para os dois apaixonados. Pegou o seu animal e, mesmo sem encilhá-lo seguiu de longe o Fazendeiro.
Esse qual animal no cio farejou o cheiro dos dois enamorados. Chegou até o rancho abandonado que na época ainda estava em boas condições e  servia de abrigo para pionada nos dias de chuva ou de muito frio.
Com um pontapé abriu a porta. Apontando a arma e o chicote disse: 
- Pensam que vocês me enganaram?
Deu umas chicotadas no rapaz que tonto caiu no chão. Amarrou os seus pulsos. E, jogou-o num canto. Com o lampião aceso, para que ele presenciasse a cena, pegou a moça pelos cabelos e a chicoteou, até sangrar.
E ordenou:
- Tire a roupa bem ligeiro que não posso mais esperar. Passou as mãos nos mamilos dela e, quase os arrancou. Sangraram os dois.  Ela nem conseguia mais chorar.
O rapaz até pediu perdão e suplicou:
- Não a mate faça o que quiser comigo. . .
Recebeu mais um chute e um bofetão no rosto. Você vai assistir ela ser minha.  Depois mato os dois. Para aprenderem quem é que manda aqui na Campanha.
O peão que seguiu o patrão presenciava a cena e, não se arriscava interferir. Estava paralisado pelo medo.
O fazendeiro no auge do desejo e da raiva farejou a presença dele. Puxou-o para dentro do rancho e o chicoteou também.
- Pensa que você vai acudir esses dois? Vais morrer junto.  Virou pra moça  deite no chão e abra as pernas.
A moça já nua sem forças para resistir, só rezava. O fazendeiro a estuprou com tanta violência que o sangue da jovem, jorrava longe. Pegou o relho e enfiou o cabo corpo a dentro, mexendo-o com toda a raiva do mundo. A moça só urrava de dor. Mandou o peão estuprá-la também. 
E, disse:
- Agora estão satisfeitos. Se tivesses sido minha na casa da Escola terias recebido carinho. Pegou o relho do cavalo e bateu nos três até saciar a sua raiva.
Os três corpos ficaram deformados e o chão do rancho se embebeu do sangue dos inocentes.
Com medo que estivessem vivos, ele os degolou com a adaga que sempre trazia na guaiaca.
Fechou a porta e foi embora levando os três cavalos. Chegando no galpão entrou na roda do chimarrão e disse:
- Aquele que fizer qualquer comentário terá o mesmo fim. E não quero que os corpos sejam enterrados.
Foi um silêncio macabro, tomaram mais umas cuias e saíram para as lidas do campo.
A vida na casa grande continuou como se nada tivesse acontecido. A mãe da moça passou a fazer os serviços domésticos, em silêncio.
Na noite seguinte os peões na volta para o Galpão nem conseguiam comentar o ocorrido. Estavam horrorizados com o que viram no rancho. 
Aquele que foi escolhido para ser o novo capataz jogou um pouco de terra em cima dos três corpos e amarrou aporta com pedaço de tento  de coro de veado para que nenhum  animal  profanasse ainda mais o local.
Sem poderem agir ou externar sua dor arrumaram os pelegos e foram dormir, bem cedo com as primeiras estrelas da noite, sem jantar.
Ainda enxergaram o fazendeiro caminhando na varanda e batendo as botas, com um enorme charuto que fumava tragando a fumaça.
De repente, acordaram assustados. Ouviram gemidos, pedidos de clemência. Ouviram ainda os lamentos da pobre moça.
Disse um deles, olhando para o céu:
- É meia-noite.  As corujas piaram, o galo cantou. Alguns cavalos relincharam. Um vento frio, trazendo cheiro de sangue humano passou pelo local.
Todos se benzeram e tentaram passar a noite.
Assim foi a história da Fazenda do Rancho Abandonado depois do monjolo, que nunca mais foi usado.

 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "Casos da Meia-noite" - Edição 2019 - Novembro de 2019