José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

 

 

O bilhete

                

 

          - O mundo é tão monótono: os crepúsculos são todos iguais, os arco íris sempre têm as mesmas cores, as nuvem sempre são irregulares. 
         Numa fazenda à beira mar morava Lana, linda garota cheia de jóias, mas de vida vazia.  Dezessete anos é a idade dos conflitos, abrem-se as cortinas e um mundo novo se apresenta, os passos seguintes significam deixar o mundo visionário da adolescência para entrar no mundo romântico da juventude.  Dormem-se as fadas para despertar os anjos cupidos.
        Lia e relia um bilhete anônimo contendo o desenho de um coração vermelho: “Lana, eu te amo”. Algumas hipóteses, entre príncipes e cavalheiros levantava de quem seria o autor apaixonado. Foi o criado da casa, o jovem Fried, conhecido como “o Doido” pela deficiência, que veio do jardim e lhe entregou o misterioso envelope.
         O Doido era normal até que o mar tragou sua sanidade. Excessivamente bom, um dia quis por fim ao tédio de Lana dando-lhe a maior pérola do mar. Atirou-se na cova das ostras abrindo uma a uma, mas depois sentiu a água inundar seu peito. O infeliz apagou, ninguém sabe como foi parar no mangue, daí surgiram lendas de que fora salvo por golfinhos, sereias, fadas. Desmaiado os vaqueiros o levaram, e num porão esperavam que acordasse ou morresse. Despertou depois de três dias, porém nunca mais falou, nem chorou nem sorriu, jamais expressou qualquer sentimento. A falta de oxigênio danificou seus neurônios, passou somente a obedecer, como sem vontade própria.
          Um mês de silêncio, Lana se sentindo exausta desistiu de encontrar o autor apaixonado e transformou o bilhete num papel amassado na lixeira. A solidão voltou, e sozinha em seu quarto todas as noites sussurrava:
          - O mundo é tão monótono: as flores perfumam tão pouco, os pássaros cantam sempre a mesma canção, as estrelas sempre são as mesmas.  
          O mundo não parava e tinha que voltar à rotina, tirou da mochila o livro de inglês a fim de estudar para a prova do colégio, empalideceu quando encontrou entre as páginas o segundo bilhete com o desenho de um coração vermelho: “Lana, eu te amo”. Foi como se um gélido vento arrepiasse seu coração e seu peito tremeu de medo: “Ele está indo longe demais, agora deu para invadir minhas coisas”.  
          Chamou o Doido num grito de pânico, ainda que não soubesse o real nível de seu discernimento, contou-lhe sua aflição: afinal, aquele emudecido jamais revelaria qualquer segredo. Traçou um plano para tentar descobrir se o autor era alguém apaixonado, ou se brincava com seus sentimentos. 
          Vestiu-se do mais lindo vestido, e numa brancura de seda bordado com fios de prata se transformou na princesa mais brilhante. Saiu antes do sol nascer pela única estrada em direção ao oriente, ordenando ao Doido que à espreita lhe protegesse. Um só grito que desse, ele deveria socorrê-la.
          Andava a sós pela estrada plana, mas sentia os perigos de um abismo: tudo estava diferente, o vento gemia entre as árvores, os pássaros zombavam com seus cânticos metafóricos se esvoaçando aos ouvidos, e o Doido se escondia nas pedras viscosas dos barrancos.
          Três vezes ela foi abordada: a primeira foi de manhã por uma criança que saiu de um jardim, pedia para brincar de fantasias; a segunda foi à tarde por um ébrio que saiu de um hospital, pedia informações onde era o norte; a terceira foi à noite por um velho que saiu de um asilo, pedia dinheiro para comprar uma bengala. Nenhum sinal! Impossível um deles ser o autor apaixonado, ainda assim tiveram que escapar da fúria do Doido que os atacou em segredo, em consequência disso foi preso e na delegacia foi solto mediante complicadas explicações de Lana.
          Mal voltavam para casa o Doido lhe entregou outro envelope, era o terceiro bilhete com o desenho de um coração vermelho: “Lana, eu te amo”. Ele cambaleava, olhava como uma lívida estátua de mármore sem expressar qualquer sentimento, Lana insistia que contasse quem o fez de menino de recados, por que não prendeu o autor.
          - És um imprestável, Fried! Não te trouxe para ajudar o inimigo, agora o autor passa por aí e ri das minhas agonias.
          Lana se sentia desprotegida, confiou num ser que não passava de um cão adestrado, onde as palavras mais complexas não têm o menor sentido, ainda assim continuou a desabafar: não para ele, mas para si mesma.
          - Oh! Vazio! Oh! Deus, em nome de todos os anjos de amor, mostra-me o amor.
          A noite avançava e Lana voltava rápido, deixando o Doido alguns metros para trás. A estrada se fazia erma e as árvores ornavam os barrancos, até que ao longe uma luz clareou, era a luminária do jardim de uma igreja que alguém se esqueceu de apagar. Parecia um sinal de Deus. Na medida em que se aproximava, aquela solidão conspirava para que aumentasse sua necessidade de conversar, ainda que não soubesse até que ponto o Doido compreendia. Não importava, era o único ser humano presente. Começou a falar:
          - É intenso o enigma dos sinos, dizem que quando ele toca suas vibrações abrem uma fenda no céu, e um anjo desce até a igreja atendendo pedidos. Se tocasse agora eu pediria o meu amor, e também que você se curasse.   
         Lana se ajoelhou junto à porta fechada e fechou os olhos para orar, pouco depois seu coração disparou pelas inesperadas badaladas do sino. Olhou para o alto, a visão era do Doido pendurado no campanário. Gritou por socorro e os vizinhos vieram. Ele não era tão débil, subiu numa árvore e pulou no campanário, todo ensanguentado pelos arranhões tocava o sino para que Lana fizesse os pedidos.
          Todos pediam que descesse, mas ele temia que o prendessem novamente. Segurou-se enquanto pode, mas suas mãos foram escorregando... Ouviu-se um estrondo. Caiu como uma folha ressequida e sem vida. Olhando Lana fechou os olhos vidrados para sempre. Lana se aproximou e viu que de seu bolso caiu um envelope e um lápis de cor vermelho. Era um bilhete com o desenho de um coração vermelho: “Lana, eu te amo”. Descobriu quem era o autor apaixonado.

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Contos Livres" - Edição 2019 - Abril de 2019