Ediloy A. C. Ferraro 
São Paulo / SP

 

 

Pacato cidadão

 

 

Arrumar um bom assento no coletivo parecia ser o objetivo único e possível naquele momento; primeiro assentar-me mais ou menos confortável, de preferência na janelinha para fugir em pensamentos vendo as paisagens se sucederem na velocidade lenta do veículo. Melhor que fixar o olhar no interior, em faces cansadas, alheias, distantes em suas intimidades, alguns consultando seus celulares, com seus fones ouvindo músicas, notícias ou vendo imagens nas redes sociais.  Observar de viés a leitura do livro do parceiro de banco, costume atrevido que tenho há muito tempo, sou compulsivo; não raro interrompendo o leitor para me informar sobre a obra, bisbilhoteiro  assumido e envergonhado. De onde esse hábito atrevido? Não consigo me lembrar, acho que desde de sempre;  tenho em conta de que é uma maneira de elogiar o ato de se ater em livros, coisa assim não tão corriqueira em nossos costumes, infelizmente. Ainda assim, nem sempre sou considerado oportuno, tirando ou incomodando o navegante de seu universo onde parece que tento embarcar clandestinamente, um carona inapropriado, invasor aborrecido, invejoso daquele prazer não compartilhado. O que conterá aquelas páginas que seduzem aquele afortunado ?  E eu ali, entediado passageiro, vagando ao léu como um enfermo em camisa de força vislumbrando as vidas passando em suas rotinas de meu posto de observador desocupado esperando chegar ao meu destino. Bem poderia ter trazido alguma coisa para ler, tenho várias leituras interrompidas aguardando minha atenção, mas raramente leio em público, coisa que me tira a concentração; ler requer um certo cenário apropriado, a mim pelo menos, um ritual que reclama acolhimento e conforto, uma poltrona em que possa me derramar e voar na magia da obra, um dicionário virtual para consultar determinada palavra a mim inédita ou não lembrada de seu sentido, talvez um caderno para pequenas anotações, coisas improváveis nestes momentos de locomoção.  Poderia aproveitar o trajeto para enredar um tema, desenvolver uma escrita, elaborar uma estória, criar outro ambiente onde me apresente como redator, deus e senhor de minhas personagens... mas quais ?  Parecia-me tão evasivo naquela manhã, disperso e distante, como tecer as teias da imaginação, dando verossimilhança às amorfas criações, o hálito de vida em fictícias situações ? Poderia me fixar nas pessoas em pé, atrever-me a especular suas realidades, sempre, claro, no silêncio de mim mesmo, apenas arrumando pretextos...  Aquela jovem de cabelos multicoloridos trajando uma jardineira jeans azul manchado, abstraída em alguma canção sussurrada em seus ouvidos via o fone, oculto entre sua cabeleireira ruiva e cheia, onde irá seus devaneios sugeridos pela música, talvez em seu namorado, quem sabe ? Ou ainda me ater àquele garoto portando livros escolares, possivelmente pensando nas próximas provas escolares mascando seu chiclete displicentemente; simpáticos mas não necessariamente inspiradores para um texto ambicioso de fisgar algum admirador. O tempo fluía com a vagareza do ônibus, no entra e sai em cada parada, renovando os transeuntes mas ainda não suficientes para uma trama robusta e cativante.  Sentia-me como um autor em busca de suas personagens, explorando os companheiros de viagem sem que desconfiassem de minhas literárias intenções. Talvez um caçador, ou mais tenebroso, um vampiro à cata de emoções, de novas vítimas...ri-me de minhas observações pueris, disfarçando o olhar pela vidraça.
Embora abomine violências, talvez um assalto quebrasse a monotonia daquela viagem, algo que conturbasse o pacífico ambiente. Revolucionasse aquele trajeto, alguém fazendo a outro de refém, multidão externa atenta aos acontecimentos, suores nos rostos preocupados, despertos de suas indiferenças e previsibilidades. Sirenes policiais conturbando o trânsito, enfim no meio da polvorosa coletiva, neurose das grandes cidades, protagonizando enredo policial a ser veiculado nos telejornais televisivos logo mais a noite. Pedidos de calma demonstrando temores nervosos, algumas orações balbuciadas pelos mais crédulos.  Temor destes conflitos, surdos mudos, intramuros em mim mesmo. Figura pacífica, cordial, assassino potencial em série assombrosa. Mantendo oculto estigmas e barbáries só vistos em cinemas, comendo pipocas no escurinho da telona. Lobo voraz em pele de cordeiro, maremotos íntimos... ah, que besta abrigo em mim para sentir o sangue quente e viscoso das vítimas! Emoções fortes, privilégios da ficção de uma mente endiabrada e pouco crível, monstro civilizado, enformado numa casca aceitável de inconfessáveis atrocidades... Apenas um solitário e insosso pacato cidadão levantando-se para descer no próximo ponto.

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Contos que copiam os sonhos" - Edição 2018 - Novembro de 2018