Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

Confissões de um pé

 

                

          Sofro!
          As boas lembranças que tenho de minha existência são longínquas, quando eu pertencia a um bebê. As pessoas me acariciavam, admiravam e beijavam, passando meus dedinhos nos narizes. Era uma cosquinha gostosa.
          Cresci.
          Minha dona engordou um pouco e comecei a sentir seu peso. Mas tudo bem. Até que era gostoso ampará-la nas suas correrias dentro de um tênis macio ou me sentir limpinho e cheiroso, depois do banho, num chinelo confortável.
          O tempo passou. Aí sim comecei a sofrer. Ah! Os saltos... Primeiro os de tamanho médio.  Então vieram os maiores. Meu calcanhar se levantou, meus dedos ficaram esticados só com as pontas no chão. Aquilo doía. Eu não via a hora de chegar a casa. A primeira coisa que a minha dona fazia era tirar os sapatos e até ela suspirava: - que alívio! Então me elevava e fazia uma massagem. Era bom! Aquilo me relaxava e deixava pronto para uma nova empreitada.
          Que sufoco eram as manhãs de caminhada. Que calor dentro de um tênis calçado com meias grossas. Começava muito bem, depois eu ficava dolorido, doído e muito doído. Minha senhora mancava e reclamava. Ameaçava não caminhar mais. No dia seguinte era a mesma coisa.
          Foi então que percebi um caroço do lado de fora do meu dedão. Minha dona passou a mão no local e exclamou: - Nossa, joanete! Estou perdida!
          O que era aquilo?
           Ela me levou ao médico, que disse: - só tem uma coisa a fazer, cirurgia. É uma deformidade que tende a crescer.
          Então eu estava deformado, que pena! Eu que era tão esbelto, com unhas delicadas sempre esmaltadas. Agora este calombo externo. O jeito era aceitar. Minha dona, graças a Deus, tinha pavor de cirurgia. Ela até que tentou me aliviar colocando-me uns protetores de silicone. Aí o sapato ficava mais apertado e o mindinho, lá do outro lado, sofria também.
          Melhor deixar como está.
          Hoje os meus dias são inconstantes. Alguns sapatos me machucam e fico dolorido por um bom tempo. Então é esperar ser calçado por uma sandália que não me abrace ou por um sapato macio, que dá algum resultado, de uma linha chamada “confort”.
          Por vezes me pego com pena da minha dona. Ela olha as vitrinas. Deseja um sapato, ela sempre gostou de comprá-los, mas diz consigo mesma: - não adianta, não consigo usar!
          Ufa! Ainda bem que estou no corpo de uma pessoa consciente!

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Seleta de Contos de Autores Premiados" - Edição 2018 - Setembro de 2018