Mirna Schuler
Nova Friburgo / RJ

 

 

A visita

                

 


      O almoço de domingo, em família, terminara. Todos tinham se retirado para suas casas. A rotina de sempre. Apenas a velha senhora e seus cães ficaram na casa, já parcialmente arrumada, com a ajuda de todos.
      Sentou-se, então, na cadeira de balanço, pegou o livro que estava sobre a mesa de centro e dispôs-se a iniciar a leitura do último capítulo, ansiosa por descobrir como a autora solucionaria
Aquela intrincada trama.
      Nesse momento, os cachorros começaram a latir, como se alguém estivesse no portão. Imediatamente, a campainha estridente tocou. Precisava trocar essa campainha urgentemente, pensou. Se não fosse o alerta antecipado de seus pequenos e barulhentos companheiros, já teria sofrido um enfarto por conta do susto que levava com aquele exagero de som. Afinal, ainda não estava surda o suficiente para precisar daquele sino escandaloso.
      Quem seria? Quem ainda vinha à casa de alguém sem avisar? Fazia tanto tempo que não recebia visitas inesperadas. Decerto seria alguém querendo vender, pedir ou divulgar alguma coisa. Quem sabe, religiosos cumprindo as missões que lhes cabiam. Precisava ter cautela ao abrir o portão.
      No seu passo vagaroso (para que pressa?), foi à cozinha onde ficava o interfone e perguntou quem era.
      - Uma visita surpresa para você.
      - Como assim? Não estou esperando ninguém! Que história é essa?
      - Tem razão. Mas vou te dar uma dica. Quem está aqui, veio de longe no tempo e no espaço. A senha é: 50 anos, cajá manga, torre do sino.
      - Meu Deus! Impossível!
      Pressionou o botão, largou o aparelho sem sequer colocá-lo no lugar e saiu em disparada.
      Como se tivesse 10 a menos, venceu a distância com uma desenvoltura que pensava perdida e encontrou a amiga no jardim. Estacou. Olhou-a, sem muito se aproximar. Um desejo estranho de eternizar o momento de profunda emoção tomou conta dela. Sentiu que se continuasse, algo quebraria aquele encanto. Mas foi só um átimo, pois nem percebeu como, no segundo seguinte viu-se enlaçando Helenita.
      Não conseguia pensar, falar, ouvir, nada. Apenas sentia ondas intermináveis de uma emoção deliciosa atingirem seu ser integralmente. A palavra êxtase veio a sua mente. Entregou-se àquele momento. Divino. Outra palavra. A sensação era de que o mundo girava. Para trás. E com ele tudo voltava. Magia. Outra palavra.
      Quanto tempo estaria assim? Percebeu que estava agarrada à amiga, mas temia soltá-la e perder o equilíbrio e, o que era pior, perdê-la, pois poderia ser apenas uma alucinação.
      Então, conseguiu perceber que havia calor, havia perfume e havia reciprocidade no abraço. Era real. Abriu os olhos e, mesmo através das lágrimas que lhe inundavam a face, viu o rosto da amiga.
      Trocaram sorrisos guardados há mais de meio século. Enxugaram uma as lágrimas da outra, com a ternura de uma amizade eterna, seguraram as mãos com a antiga confiança de colegas de colégio.
      E, nesse momento, o tempo parou. E as duas entraram na sala, sentaram-se no sofá, como se estivessem no passado. Não cansavam de se olhar e sorrir. Não falavam. Estavam envoltas numa bolha do espaço-tempo, onde mais ninguém penetrava. Sorriam. Choravam. Não precisavam falar. Estavam deixando aquele milagre seguir seu curso no tempo necessário.
      E assim foi. Cada uma soube da outra, nesse lapso de 55 anos, tudo o que se passou, sem nenhuma palavra ser pronunciada. Era como um celular fazendo atualização de software.
      Depois, conseguiram retornar à realidade e Helenita contou como havia conseguido chegar até esse momento. Suas buscas na internet, as coincidências que a Providência armou. Uma história fascinante. Um enredo de novela.
      Não se cansava de olhar para Helena que lhe trouxera tanta felicidade naquela tarde, quando descobriram que se podia comprimir 55 anos em alguns minutos e prosseguir uma amizade interrompida, como se o tempo não tivesse existido.
      Tipo assim: (dezembro de1962) - Vou-me embora, Helena, não tem jeito. Estamos mudando para outra cidade. Adeus. E, então: (maio de 2018) – Oi, Helena, tudo bem? Voltei.
      Não quiseram conversar muito. As emoções intensas as haviam consumido. Além disso, tinham-se encontrado. Não se perderiam mais. Tudo o que viveram até aqui, tinha-lhes ensinado que não precisavam mais ter pressa. Teriam muito tempo para estar juntas e continuar tecendo essa amizade tão especial.
      Helena se foi. Precisava retornar a sua cidade. Voltaria.
      Ela ficou na sala vazia, mas não se sentia só. Em seu coração havia tanto júbilo, tanta gratidão, tanta esperança e tanta fé trazidos por esse reencontro, que não sobrou espaço para solidão.
      Pegou o livro que pretendia terminar de ler hoje. Deixou-o sobre a mesa.
      Havia muito mais histórias reais interessantes para lembrar.
     

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Vox populi, vox Dei" - Edição 2019 - Agosto de 2019