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Manoel Rodrigues Leite
Sinop / MT

 

Maria Seda

 

Existem muitas formas de cuidado, uma que sempre me surpreende é quando o cuidado é exercido por uma comunidade - mesmo que seja sem articulações formais, a uma pessoa que de alguma forma tem significado a essa comunidade. Sei de muitas histórias, de lugares e pessoas. Porém uma sempre me marcou:
            Maria Seda era uma mulher como tantas muito vaidosa, sempre o que chamava a atenção, que mesmo sendo humilde fazia gosto em usar roupas de seda. Dizia minha mãe ao falar dela com muito respeito.
            - Mas por que essa louca não sai desse bairro? Parece que todos a aceitam. Acho que o mais certo seria levá-la para um hospício. - Essa era a palavra de uma vizinha e, lógico, novata no bairro.
            - Não tem por que se livrar dela, ela não é perigosa é apenas uma mãe que sofre.
            - Como assim mãe? Não vejo ela com ninguém? Os filhos dela que deveriam cuidar dela.
            - Mas não foi sempre assim. Maria Seda era uma mulher trabalhadora e criava sua filha sozinha. Era muito cuidadosa, trabalhava em casa de família, e fazia bem os seus serviços. Qual mãe não enlouqueceria ao perder uma filha?
            - A filha dela morreu de quê?
            - Não se sabe se morreu, talvez a morte doesse menos. Conta-se que depois de tempos trabalhando em casa de família a sua filha desapareceu. Sumiu sem deixar pistas, ela levou para trabalhar e enquanto fazia a faxina, a pequena menina não estava descansando aonde ela havia deixado. Ela procurou, gritou, desesperou-se e pediu ajuda aos patrões que apenas falaram que não tinham visto a filha dela naquele dia. Ninguém sabia, ninguém fazia nada. O sumiço foi como se nunca tivesse existindo, mas para uma mãe filho só muda de lugar: quando sai do ventre entra no coração de lá nunca mais sai, não importa o tempo ou o lugar.
            - E o que aconteceu com a filha dela?
            - Falam isso, falam aquilo. Só que encontrar nunca foi encontrada. E, como continuar a alegria se alegria desaparece sem nenhum aviso. Maria Seda perdeu o gosto pela vida, mas antes se revoltou com aqueles que ela dizia ser os responsáveis pelo sumiço. Com o tempo toda luta cansa e acho que foi isso de tanto ser chamada de louca por responsabilizar os patrões, ela aceitou os dizeres e começou a viver entre a esperança e a loucura. Pois a loucura conforta aqueles que sofrem.
            - É verdade! Tem coisas que dói muito. Mas vou indo, outra hora a gente toma um café.
            Ao ver aquela mulher ir, na época não sabia que o peso do mundo faz pesar os olhos, os ombros e o coração. Vi aquela mulher que chegara com tanta certeza, com cabeça e nariz levantado. Sair como quem estivesse carregando muito peso e olhando os buracos do chão. Talvez apenas lembrou de algo e quis chegar a tempo no compromisso. Talvez tenha lembrando que também é mãe, e sendo mãe sempre tem medo de alguma coisa acontecer com os filhos, e sempre tem que confirmar se está bem. Mesmo que dizem que sim a dúvida nunca cessa.
            Passados os anos muitas coisas mudam. Eu mudei da cidade aonde vivera minha infância, mas o meu coração nunca saiu daquele bairro, daquela simplicidade. Tempos depois quando visitava, encontrei aquela mulher conhecida como louca, mas cuidada pela comunidade. Mesmo crescido ela me reconheceu e era agradecida pelo meu pai tê-la deixado morar mais de dois anos sem cobrar nada de aluguel em uma de suas casas. A loucura não tira a gratidão, o que tira a gratidão é o orgulho e a inveja.
            Naquela ocasião vi aqueles que vieram muito depois do sumiço de sua filha, falarem para seus filhos levarem comida, roupa e as vezes cobertores. Mesmo morando na rua era cuidada por pessoas que teriam idade de sua filha e de seus netos.
Não é um conforto, talvez seja apenas um pouco de justiça. E, de tudo isso o que mais me fez ter certeza é o fato de que a solidariedade é mais presente entre os humildes.

 


 
 
Conto publicado no livro "Contos Livres" - Abril de 2016