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Anchieta Alves de Santana
Uruçuí / PI

 

Nosso sangue de índio

               

             O povoado Sangue fica a 48 km da sede do município de Uruçuí. Uma região de veredas extensas, pássaros que encantam e riachos temporários saciando sedes em meio a muitas árvores retorcidas e uma pequena diversidade animal.
             Sangue não é nenhuma homenagem rendida aos colonizadores desses recantos do sul piauiense, mas um registro de um massacre sanguinolento ocorrido nas caatingas daquele lugarejo.  Foi o maior ato de extermínio indígena ocorrido nesta grande região que, à época, meados do século XVIII, pertencia à província de Jerumenha.
              Ilustres memórias-dentre elas meu avô José Delmiro- e os anais da história dão conta de que a caça aos índios era obsessiva, não respeitava o gênero nem a faixa etária dos nativos. Mas não era uma guerra. Não. Definitivamente, não. Não se guerreia com indefesos. Massacra-se.  Consta que um comandado de João do Rego Castelo Branco, Cipriano Borges, após várias investidas no rito da exterminação buscando novas terras, descobriu vestígios de índios nas proximidades de um riacho daquela localidade. E, como todo bom cão caçador que pressente a presa, ficou bastante eufórico ao tempo em que abria caminho em meio a árvores de cipós e espinhos daquela flora ainda virgem. O velho bandeirante, já experimentado em outras investidas contra os nativos, já sabia que estava na trilha dos Acroás. Como o grupo estava diminuto, mandou um portador buscar reforço de um agrupamento que seguia em direção às margens do Gurguéia.
            Dias depois, em certa tarde de inverno, após exaustiva caminhada, avistaram, do alto de uma serra, movimento da tribo. A alegria comemorativa ficou estampada na face de cada membro do grupo de caçada aos nativos. Ficaram, por um bom tempo, em estado de observação.
           Cipriano, após estudo do ambiente, ficou em silêncio por algum tempo e começou a ditar os procedimentos de estratégias:
           -Vamos aguardar o momento certo para fecharmos o cerco de forma implacável.
          - A melhor hora será após a meia noite, para termos certeza de que não há nenhum nativo acordado-sugeriu Manuel Leite, que não parava de afiar a ponta de sua lança.
          - Está combinado. Sussurrou Cipriano.
         O resto do grupo ouvia e gesticulava concordando com as sugestões apresentadas pela linha de frente do comando exterminador.
         Já é madrugada. Anunciou o escravo Zunga olhando a posição dos astros. Após  os acertos dos últimos detalhes, conferência das armas de punho...rumaram para o cerco à tribo acroaense que dormia sono profundo. Talvez  sonhando com a história de sua tribo e sua nação, após fugirem de inúmeras emboscadas; ou, quem sabe, a temática do sonho fosse a busca do entendimento dos motivos que levavam o homem branco a, todo custo, apossarem das terras bem cuidadas pelo homem nativo há mais de dois séculos. Índios também sonha.
        Os comandados rastejaram-quase que deslizando morro abaixo, em busca de uma melhor posição para um ataque compensador. Cipriano checou as posições e deu ordem de ação. Já passava das três horas da manhã. O alvorecer no sertão já orientava alguns norteamentos.
        O ataque saiu conforme combinado. Detrás de cada moita, de cada tronco de árvore centenária, saía um bando, armado até os dentes, tomado por uma sede de morte. Sede letal.
        Foi um clamor intenso: índios acordavam atordoados e eram golpeados pelas lanças afiadas; crianças que tentavam correr eram cortadas ao meio como se faz com bananeira após a colheita dos frutos. Em meio àquele massacre, era impossível usar tacape, arco e flechas.... Aliás, nem se lembravam de tais armas. Nem tampouco o que estava acontecendo. Desorientação total.
        Os gritos e larídeos estridentes de um povo indefeso ecoavam nas serras daquele lugarejo. Mas nada, nada mesmo, amolecia o coração dos colonizadores usurpadores e tiranos. O líder, Cipriano Borges, vibrava com a queda de cada índio se esvaindo em sangue.  Sangue puro de nativo. Sangue dos legítimos donos daquelas terras que ora estavam sendo tomadas a ferro e fogo. Naquela situação era impossível fugir ao cerco mortífero de tática de massacre. Mas, aos poucos, as folhas foram ficando vermelhas e o amontoado de cadáveres indígenas dava a dimensão do aniquilamento... do massacre...do maior genocídio nesta região do Piauí! Ali, já não se pisava no mesmo solo. Agora, um tapete vermelho formado pela matéria sanguínea indígena era pisoteado.
       Ao romper da aurora, viram que a missão estava concretizada. Também ensanguentados com o sangue que jorrava dos índios, os tiranos chutavam os cadáveres em busca de algum sinal de vida. De repente, no meio do lamaçal sanguíneo, uma pequena criança começou a gritar. Era uma indiazinha. Era uma inocente que chorava a dor de sua tribo sentada em meio a centenas de corpos familiares. Chorava inocentemente uma dor coletiva. Registrava-se, ali, quiçá, na história, a primeira vez que uma criança chorava, não apenas pelos pais, pelos caos ali instalado, mas pela nação nativa. Os gritos desesperados daquela pequena indiazinha indicavam a intensidade do sofrimento.
       Ordenado pelo chefe, os capangas limparam a garotinha e, após discussões, ela foi levada para o aldeamento São Félix da Boa Vista, que ficava no entroncamento dos rios Parnaíba e Balsas. Era o ano de 1756.
        A indiazinha recebeu o nome de Maria, foi escravizada, sofreu vários tipos de violências e morreu aos vinte e cinco anos de idade, vitimada por doença dos brancos.
        Esta é a triste origem do nome do povoado onde nasci, passei parte de minha infância e ainda vivem meus pais e outros parentes.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos Fantásticos - Edição 2016" - Setembro de 2016