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Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

Há um outro dentro de mim...

 

 

Nasceu numa cidade repleta de sons, ruídos, fantasias e preconceitos. Seu nome era visivelmente uma incógnita em sua vida. O narrador desta história prefere não dizê-lo, por que de qualquer forma haverá sempre alguém que carregue consigo esta mesma história e pode ser facilmente identificado com o traumático personagem. Parece que só ele é um sujeito traumático. Toda a humanidade o é, desde os primórdios da história quando mulher e criança não eram sujeitos, apenas objetos sociais usados por um sistema patriarcal que até hoje tem deixado rastros/resíduos de sua materialidade constitutiva.
A insônia do narrador desespera o personagem que está dentro dele querendo falar e sair de seu mundo interior. Trata-se de alguém que sempre usou uma máscara para não ser visivelmente encontrado e apontado por alguém como o diferente, o rejeitado, o não-aceito. Então ele sempre preferiu viver escondido dentro do narrador. Mas, hoje, nem mesmo um ansiolítico pode fazê-lo dormir. Um morcego daqueles que só saiu de seu quarto quando ele resolveu ir à sala e escrever esta desencontrada história: uma história sem gosto de história, pincelada por fragmentos de pedaços estragados que vomitam da boca do narrador. Mas o narrador percebe que já são seis horas da manhã e o seu cansado corpo, ativado por bombas de ideias e pensamentos descarrega por meio de signos desestruturantes a voz que se esconde por trás de cortinas traumáticas que cansam o seu olhar de poeta e contista viajante. Coloca o colírio para amenizar a ardência de sua visão que cansativa pede socorro, e deseja adormecer, mas este pobre narrador não consegue cerrar seus olhos por causa de seu inquilino que alugou o seu corpo por um tempo rápido de suspiro.
O sujeito que toma a voz do próprio narrador se reveste de um poder passageiro e começa a narrar-se: moro neste corpo silenciosamente há anos. Só agora consegui sair do escuro interior do qual eu vivia aprisionado. Aproveitei a brecha do narrador que havia lido e assistido um reflexivo vídeo onde um homem diferente de todos os pastores, pregadores, evangelistas e missionários havia lhe dito sobre milhares de coisas que ele jamais tinha ouvido, e ao se comover entrou numa superficial crise de valores. Foi aí que eu aproveitei o momento e consegui escapar nem que seja por algumas horas da terrível prisão em que eu me encontrava. Sei que o narrador daqui a pouco retorna ao centro, e eu tenho que novamente recolher-me à minha indesejável casa do silêncio. Um dia, lá de dentro da alma, tentarei convencê-lo de que eu preciso definitivamente fazer parte de sua vida, e ele definitivamente conviverá com nós dois. Ele, o comandante cheio de dúvidas, e eu, o outro que tenta destravá-lo dessas correntes ideológicas criadas por sua própria mente, detritos e lixos que ele absorve da insana sociedade da qual ele vive. Desta forma, aproveito para dizer que eu não tenho opção sexual, detesto discursos fechados e ideologias religiosas que escravizam o homem e os cegam de ver a verdadeira verdade: a verdade que só tem quem a vive. Não basta pregar para as multidões, e não viver com exatidão o que se prega. Um fingimento exacerbado toma a maioria dos pós-modernos sujeitos que vivem de máscaras e buscam em falsas ilusões identidades a serem vividas, compartilhadas e padroniza, pseudos discursos que carregam multidões para o caos escuro de falsas vidas vividas. Eu sou diferente, acredito no poder da decisão sem rupturas, freios e dúvidas, ou é ou não é, ou cede ou desce, ou vai ou não vai! E por falar em liberdade, a uso com restrições porque o narrador daqui a pouco me toma e eu tenho que ir embora, não em boa hora, mas forçado pela hora, pelo tempo sofrido da outra parte de mim, que fala por mim, vive por mim, mas na realidade, também é um sujeito que usa e abusa de máscaras, porém o faz sem inconscientemente. Quando eu, sua consciência verdadeira cansar-me de estar em transe, tudo mudará. Um dia, por definitivo, lutarei com ele, e o convencerei que eu não posso mais viver aprisionado, sem nome, desgarrado de minha própria vida, centrado num lugar onde não há tempo, espaço nem histórias para contar. Na realidade eu sou a lídima narrativa que o narrador esconde de si e dos outros.
Agora tenho que ir embora, o efeito do ansiolítico começa a fazer efeito, e o narrador, vai adormecer, e eu mais uma vez, vou aparecer-lhe em sonhos, em forma de imagens distorcidas e fragmentadas para novamente dizer-lhe: me deixe sair deste lugar inabitável, repleto de sons, ruídos e deformações oníricas. Enquanto ele não me descobrir e não permitir que eu faça parte de sua vida, viverá de forma incompleta, rodeado de sombras, devaneios, lacunas e traumas, principalmente traumas, trauma de não ser o que deve ser, trauma de dizer o que pensa sem se preocupar com ninguém, trauma de existência histórica, porque desde o seu nascimento, eu vivo aqui querendo sair, ter vida própria, trauma de ausência de si, trauma de perdas acumuladas no passado, traumas que só desaparecerão quando ele descobrir que eu existo. Mas, você, caro leitor, sabe agora de minha existência. Ajude o narrador a desamarrar os nós desta história, e contar da próxima vez uma nova história: a minha história, seja como for, dramática e trágica, mas uma história que precisa ser compartilhada com o amigo leitor, principalmente o leitor que também vive esse mesmo dilema: o de habitar um corpo e não ter voz, vez e direito de ser, ter, estar e locomover-se livremente. Despeço-me do amigo ou da amiga, do conhecido e do estranho com a certeza de que um dia eu os verei em algum lugar deste mundo repleto de sons, ruídos e fantasias. Sou o inconsciente individual que pretende um dia se coletivizar e avançar o espaço do discurso literário, atingir os finos fios da vontade e potência que tantos homens tem de sobra, e falta em tantos homens desbotados de cor e sentido, de vida e vontade própria.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de Outono - Edição 2016" - Agosto de 2016