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José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

Diálogo com meu reflexo

 

 

Era em meu quarto. Uma noite em que meus olhos de insônia ardiam, porque guardo segredos tão ocultos que ao melhor amigo mão é dado saber. Quem é digno de saber o que nossa alma guarda em seus arquivos? Dramas tão ocultos nas cavernas da alma somente acessíveis a Deus?  Amigos que sintam exatamente os sabores de nossas dores, a rigor é impossível. Além do mais, nós só contamos o que julgamos serem capazes de compreender.
          Meu nome é Altitudo. Num momento de agonia em frente do espelho do meu quarto fitei o meu reflexo, e em secreto confidenciei meus dramas.
          — O mundo é o Édem decaído, a perdição da serpente. Na intimidade desta aparente sociedade civilizada atua o fermento silencioso da podridão. É o deleite blasfemo combatendo o sagrado. Agora abro minha alma libertando meus dramas: sinto-me, às vezes, vergado pelo peso deste mundo devasso. Mesmo relutante, ora me contamino com sedes e fomes do mundo. Eis-me diante do meu reflexo: mais do que isto, da minha consciência.
          Como foi difícil fitar a mim mesmo, estar face a face comigo mesmo. Olhar-se no espelho para se arrumar é diferente de olhar-se no espelho para ver a si mesmo.   
          Era um reflexo que penetrava nos meus olhos, abria frestas pelos ossos e infiltrava na minha alma e já não havia mais segredo que pudesse ser ocultado. Com o tempo acabei me acostumando, até sentindo falta. Todos os dias reservava um tempo para me encontrar com meu reflexo, que se tornou no meu melhor amigo. Parecia que adquiriu vida própria, falava com uma sabedoria acima do que eu imaginava que tivesse. Ora eu desabafava e ele me alentava, ora eu contava meus graves pecados e ele me aconselhava, outras vezes me guiava nas indecisões, corrigia minha conduta. Meu juiz e guia. Bastava eu pensar para que suas palavras surgissem com sabedoria na minha cabeça. Foi assim que conheci um amigo de verdade: o meu reflexo no espelho.  
          A vida seguia, mas já não era como antes. Só depois que criei íntimos laços com meu reflexo é que dei conta de que havia duas irmãs que me disputavam: a prostituta que se chamava Maculata e a santa que se chamava Glorian. Mas, eu não sabia quem era quem.
          — Ouvi-me, amigo. Qual das duas é a santa? — perguntei ao meu reflexo.
          — A prostituta exigirá vosso corpo, a santa vossa alma — respondeu.
          — Como assim? — estranhei.
          — Sabei-a vivendo! — respondeu o reflexo.
          Tracei planos para decifrar quem era quem, através de encontros na noite e no dia, na alegria e tristeza, bebendo água e vinho.
          Depois de algum convívio decifrei a primeira, foi relativamente fácil, nem precisei da confirmação do meu amigo reflexo. A prostituta não tentou esconder nada, pois prende pelos sentidos, descaradamente me ofereceu prazeres e desvarios. Trazia garrafas de vinho para que eu me embriagasse e não sentisse as pedras e espinhos pelo caminho. Faria com que eu sentisse um sabor de mel estando com lodo na boca, um perfume das flores estando imerso nos vermes... Mas exigiu minha saúde para que meu corpo derretesse aos poucos pelas intensas cargas de prazer. A segunda era a santa, falava baixinho, pois só prende a quem se esforça em prestar atenção. Ofereceu-me uma vida de renúncias, disciplina, esforços constantes para o controle dos sentidos. Mostrou-me muitas caixas de lenços e prometeu que enxugaria minhas lágrimas, suores e, algumas vezes meu sangue, por causa das pedras e espinhos.
          Passei a conviver com os três reflexos: o meu, o da prostituta e o da santa. Fiquei tão íntimo que os reflexos do bem e do mal saíram do espelho e passaram a sussurrar dentro da minha cabeça onde quer que eu estivesse.
          A escolha da santa parecia óbvio, porém, nada fácil para quem é desafiado a suportar os inebriantes prazeres dos sentidos oriundos da lama podre do mundo, que fazem o ventre queimar de febre e os olhos delirarem sob sonhos voluptuosos de um amor contaminado.  
          Era na vida, eu não ouvia mais a voz do meu reflexo, nem a da santa, a voz da prostituta era alta demais e seus ecos causavam delírios irresistíveis.  
          Entre um dia e outro eu esfregava meus olhos turvos e meus ouvidos surdos, por mais que me esforçasse só via o reflexo de uma forma seminua com sua voz melíflua. Era aquela serpente na forma de uma dama que estremece o mundo, e faz as criaturas de Deus se esvaziar até morrerem de prazer! Parecia que o meu reflexo dormiu, e em seu lugar reinava o da prostituta.
          A vida seguia cada vez mais difícil. Depois de criar laços com a prostituta, ela deixa um reflexo tão real, capaz de travar uma terrível disputa entre o sagrado e o profano dentro da cabeça. Eram frouxas vozes do meu reflexo e as da santa, tentando
serem ouvidas. A voz da prostituta, uma só voz, era mais forte porque rebentava do abismo, ardente de blasfêmias! Ora meu amigo reflexo despertava do sono e me sacudia em direção à santa, mas vinha a prostituta fazendo tremer meu ventre num delírio de desejos.
          Quando a vida já estava exausta e meu hálito próximo do fim, num certo caminho me deparei numa encruzilhada. Sentei-me na relva para o desfecho: à esquerda havia um precipício aspergido de mel, à direita havia frutas num caminho de espinhos. O mel atrai, mas o precipício mata; o espinho dói, mas as frutas alimentam.
          Naquela encruzilhada havia escolhas: vida ou morte! Supliquei a presença do meu próprio reflexo, o amigo verdadeiro.
          — Eis que vos procuro — bradei ao reflexo. — Como vencer as armadilhas dos sentidos?
          — Calai-vos — respondeu meu reflexo na minha cabeça. — Sabei-o desde sempre. Ninguém poderá vos dominar, a não ser que deixais por vossa própria vontade de experimentar os sabores do mundo. Nenhuma prostituta vos manda sem vosso próprio consentimento! Basta ouvir a consciência!
          Fitei os caminhos com segurança, pois descobri: a direção é a da consciência.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de Outono - Edição 2016" - Agosto de 2016