Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Anchieta Alves de Santana
Uruçuí / PI

 

José da Malária: doido pela vida

 

         Certo dia apareceu em Uruçuí, um indivíduo com uma face marcada pelas censuras da vida. Era um homem de poucas palavras, um olhar sombrio e metido numa humildade desmedida. Sempre portando um saco cheio de restos de alimentos e outros objetos catados no lixo urbano e uma longa barba sempre por fazer numa face surrada pela luta em prol da sobrevivência. Ele parecia em busca de algo, mas não dava sinais de saber o que procurava nem onde encontrar. Era um andarilho desnorteado e casado com a paciência.
        Quase sempre cabisbaixo, caminhava...caminhava... pelas ruas de nossa Cidade Menina, como quem busca a extrema miragem do indefinível, do vago, do fim! Era um pedinte que vivia (?) na turbulência de seu íntimo, profundamente amargurado. Sentia as amarras de uma vida entregue às traças sociais e ao caos da loucura. Mesmo com uma boca cheia de dentes amarelados não carregava motivos para o franqueio de um sorriso. O seu tempo quase se reduzia a um compromisso indesejável por qualquer ser humano: roer os restos de alimentos da nossa gente e os sobejos dos cães andarilhos deste município. As suas vestes sujas e escurecidas pelo tempo e pelo barro do seu dormitório davam a tônica de seu estado de abandono. Roupas improvisadas com o que havia de sobras e trapos abandonados pelas ruas.
         Como todo bom andarilho, “Cumpadre Zé”, como ficou conhecido,  nunca abandonou seu chapéu de palha, seu facão e um saco onde eram transportadas as migalhas e objetos em sua loucura incansável em busca do “eu”. O choque, o conflito dos “eus” naquela mente desvairada pelo rolo compressor social, tornou-o vítima de duplo abandono: seu e da sociedade.
            O que acalentava e satisfazia parte de seus instintos era a “Severa”, sua eterna companheira. Ela, também, vítima de uma timidez profunda e insana, sempre vivia recolhida em seu canto de lamentos e horrores.
          José da Malária e a Severa, como bom casal, sempre se entendiam. Mesmo quando rolava uma ponta de ciúmes envolvendo outra andarilha conhecida como Maria Laura. Na busca da satisfação dos instintos sexuais, o casal não tinha predileção por lugar ou horário. Pouco importava se tinha público presente ou não. Isto, com certeza, era menos constrangedor do que ser vítima da loucura e do preconceito social. Certa vez, o ato sexual foi consumado nas calçadas ao lado da agência do Banco do Brasil. Alguns curiosos chegaram a cobrir o casal enquanto durou o deleite satisfatório dos instintos.
           A Severa, ainda mais tímida e contida do que o seu companheiro, não hesitava em mostrar “suas vergonhas” quando a meninada gritava:
- A Severa é homem! A Severa é homem!
           Ela, sem as vestes menores,  levantava a saia até a altura do umbigo para provar que era mulher.
          José da Malária e sua cara-metade abandonaram nossa cidade. Ela faleceu numa passagem por uma cidade denominada Bertolinia. Ao vê-la desfalecida, ficou bravo para impedir que o corpo fosse enterrado. Empunhou um facão e ficou a ameaçar qualquer pessoa que se aproximasse do corpo de sua amada. Do alto de sua loucura ele tinha consciência de que ali era o fim de uma vivência. A barba estava mais crescida e suja; os olhos não suportaram a dor da partida e lacrimejaram incessantemente. Pela primeira vez, aqueles olhos que sempre pareciam tristes, choravam em desatino latente. E ainda, pela primeira vez, ele parecia abraçar a consciência e medir o significado daquela situação. Após algum tempo, vencido pelo cansaço e uma aparente acentuação  da demência, ele cedeu. Deixou que levassem para a frieza da terra, aquela que, por alguns anos, foi consolada e serviu de consolo para os seus achaques. Olhando pela última vez para o corpo daquela que, por décadas, mesmo metida em fragilidades insaciáveis, serviu de esteio nos desvãos de uma vida a dois, esboçou um olhar demoradamente triste e saiu a caminhar sem um norte definido. Depois de muito andar, ficou cansado e procurou abrigo sob uma enorme mangueira. Ali, mais uma vez, limpou a sujeira das mãos na longa e endurecida barba, deixou soar uma tosse seca e tísica, olhou o recheio  do saco de viagem e deitou sobre folhas secas e formigas. Adormeceu por um bom tempo e depois, num insistente vagueio que o perseguia, ele sumiu. Estava solitário. Já não tinha com quem dividir seu rosário de densos lamentos.  
           Sumiu. Nunca mais apareceu em nossa Cidade Menina. Mas lembro, em vivos pensamentos, aquele moço barbudo e triste. Era uma tristeza macabra e indomável que o transformava num cumpridor de sina impiedosa. Não tardou muito, seu corpo também seguiu o mesmo destino dado ao de sua amada. Quis, a natureza, que nenhum filho, nenhuma herança genética ficasse sobre o solo dando continuidade a uma vida descontinuada.  

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de Outono - Edição 2016" - Agosto de 2016