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Danilo Ribeiro Barahuna
Fortaleza / CE

 

Amásia

 

Nem sempre a rua foi assim, tão movimentada. Pelo menos não daqui, de onde a vejo.
Antigamente, pouco mais de duzentas pessoas moravam em nosso vilarejo, num ponto que nem sei indicar no mapa. Hoje, resolveu instalar-se aqui o tal de progresso. Onde ficava a casa do velho Messias, hoje funciona uma oficina mecânica, localizada em frente à praça em que ela costumava aparecer.
Já se passam vinte anos desde sua última aparição na cidade. Lembro como se fosse hoje. Tinha então treze anos, mas era esperto como vovô, dizia mamãe. Sempre ficava à noite jogando “bila”, sozinho, mas espreitando todo tipo de movimento que chamasse minha atenção.
Na praça, que ficava na rua detrás de minha casa, ficava horas pulando de árvore em árvore, correndo atrás de latas usadas que o vento da noite arrastava, procurando, enfim, algo que me entretivesse até dar nove horas e mamãe gritar lá de casa mandando entrar para dormir.
Até que um dia a vi. Loira, cerca de 1,60 m – sei bem porque parecia ser uns 10 cm mais alta do que eu –, vestido branco, longo, caindo pelos pés descalços. Não via o rosto, mas não devia ter mais que 20 anos, a julgar pela pele lisa e a voz suave.
Conversava com “seu” Gérson, um viúvo que fazia pouco havia se mudado para a cidade.  Não sei do que falavam, mas notava na voz do homem certo tom de irritação. Ela, monossilábica, só meneava a cabeça, ora afirmativa, ora negativamente. Quando eu já ia aparecer para assustar seu Gérson e afastá-lo da moça, mamãe lançou sua rotineira rasga-mortalha, que normalmente fazia quando era hora de eu entrar: “Hora de dormir!”
E assim foram minhas noites de sexta e sábado por muito tempo. Sempre perto das 21h ela aparecia, um homem da cidade aproximava-se e conversavam um pouco, e eu ficava ali, anestesiado pela voz aveludada da moça. Mamãe, entretanto, nunca me deixava ver o que acontecia depois.
Uma noite, porém, desobedeci à mamãe. A curiosidade fez-me rejeitar o chamado de minha genitora, afinal, tinha que ver o rosto da mulher que me atordoava toda a semana e me deixava esperando freneticamente pelo fim de semana. Resolvi esconder-me detrás do deteriorado busto de um ex-prefeito da cidade, e esperei para ver o resto da história. Dessa vez era “seu” Messias que conversava com ela. Agarrava-lhe o braço, esbravejava tanto que lhe cuspia a cara. Estava decidido a pegar o primeiro tronco de árvore solto no chão e arrancar-lhe o cérebro fora, caso maltratasse a jovem loira. Mas ela conseguiu se desvencilhar do agressor e, por muito pouco, vejo-lhe o rosto. Não dessa vez. Correu, como sempre fazia, para o fim da rua, a qual mamãe me proibira terminantemente de trafegar.
Aquela foi a última vez que a vi, até o fatídico dia que completei meus dezoito anos. Passei dois anos indo à praça aos fins de semana para ver se ela reaparecia de repente, como fazia em meus sonhos, sussurrando meu nome baixinho e suave em meu ouvido.
Mas foi num dia de bebedeira, comemorando solitariamente meu décimo oitavo aniversário, que o inesperado aconteceu. Depois de um breve cochilo no banco da praça, vi-a, novamente com seu vestido longo e branco, vindo correndo do fim da rua – onde descobri haver um prostíbulo cuja proprietária era uma mulher, uma senhora sempre muito bem vestida . A embriaguez impediu-me que visse seu rosto, mas reparei que logo atrás dela vinha algum tarado, com as calças arreadas, vociferando palavras impronunciáveis para um jovem como eu, recém-ingresso na maioridade.
Quando a vi tropeçar e cair de busto no chão, voltou-me instantaneamente a raiva sentida em meus treze anos, quando “seu” Messias quis, covardemente, agredi-la. Dessa vez, porém, não houve escapatória: catei um paralelepípedo solto na calçada e abri um imenso buraco em sua cabeça, que caiu com o corpo inerte, morto.
Tal ato rendeu-me alguns anos na cadeia da cidade, de onde vejo ainda hoje, pela janelinha gradeada de sua lateral, o progresso e a evolução de nosso povo. Mas o mesmo ato, responsável por minha derrocada, também foi responsável pelo momento mais sublime de minha vida. Ela, com os olhos marejados, agradeceu-me por salvar sua vida, sussurrando um “obrigada” bem doce em meu ouvido.

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos do Vigário e outras Picaretices" - Julho de 2016