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Anchieta Alves de Santana
Uruçuí/ PI

 

Cafuringa come cobra

 

Recordando alguns personagens que conheci nos verdes anos de minha infância, aparecem as lembranças de um homem alcunhado de Cafuringa. O seu verdadeiro nome é uma incógnita que nem meus pais, que eram seus amigos, conseguem decifrar. Ele morava um pouco distante da nossa residência lá no povoado Sangue.
             Cafuringa era um rapaz velho que quase sempre morou sozinho ou acompanhado de um sobrinho por nome Zeca Tatá. Do Cafuringa, algumas características ficaram marcadas em minha memória de menino: ele tinha baixa estatura, sarará, corcunda, gago, cabelo cor de sujo, olhos rasgados, queixo avantajado e, quase sempre, a uma barba suja por fazer. Era um homem de poucas palavras e trazia consigo uma indecisão inominável e persistente. Algo do tipo: queria ter um grande amor, mas tinha medo da posse; queria se mostrar publicamente, mas temia a exposição. Sabia que era importante uma companhia, mas não se livrava do medo de tê-la. A sua rotina diária no trabalho não passava de duas ou três horas em suas minúsculas plantações; a maior parte do seu tempo era empregada em caçadas nas veredas e caatingas daquele povoado. Sempre portava uma espingarda que herdou de um tio materno que morreu nas presas de uma onça pintada.
             Cafuringa, em meio às suas atividades, reservava um tempo para “bater pernas” nas casas dos vizinhos. Mesmo não gostando de falar muito, ia mais para ouvir. Como os vizinhos não residiam tão próximo, ele selava seu cavalo melado, enrolava um punhado de fumo em palha de milho, acionava o “papa-fogo” para acender o cigarro e, ajeitando o seu chapéu de palha, seguia pelos caminhos do povoado. Quase sempre, só retornava de suas visitas quando a noite já se fazia presente naquelas veredas. Era amigo do tempo. Não tinha motivos para pressa.
            Ao chegar em casa, como quase nunca tomava banho, ia direto preparar seu café à base de semente de uma planta conhecida por “fedegoso”. O adoçante era rapadura produzida ali mesmo no sertão. Após saborear seu café, deitado numa rede, ficava a matutar por um bom tempo.
            E assim Cafuringa foi levando a vida. No inverno de 1975, numa bela manhã de sábado, ele recebeu uma proposta de namoro. Era algo arranjado pelo velho tio Mulato que achava muito triste a lida de Cafuringa que vivia metido numa solidão. A mulher era uma senhorita conhecida por Maria Mundoca. Moça quarentona e trabalhadeira. Ela, assim como ele, nunca tinha experimentado uma cara-metade. Ela tinha face surrada pelos afazeres domésticos. Mesmo assim uma pontinha de beleza se apresentava naquele semblante feminino. Era um corpo de aproximadamente um metro e sessenta. Ela nunca permitiu que uma face de sexo oposto beijasse sua fisionomia solteirona. Era, para os homens, um rosto virgem. Ele analisou a proposta por algumas semanas, ponderou e resolveu aceitar. Casaram-se cinco meses depois. A timidez entre os dois era um problema a ser superado.
          Mas Cafuringa não estava acostumado com a vida a dois. Não gostava da ideia de ter preocupações com mulher ou assemelhado. E pelo que se apurou depois, ele não gostava de mulher. E por diversos motivos teve um casamento muito efêmero. Não passou de dez meses.
          Após a separação ele voltou à vida que gostava. Foi aí que começo uma forte amizade com Tuca, um homem ainda moço, recém-chegado na região.
          Certo dia, já velho e cansado, ele começou a sentir o peso do tempo e, estando numa de suas caçadas foi picado por uma cobra. Era uma cascavel. A serpente mais temida do agreste. Dizem que ela pica e se afasta para que a vítima não caía sobre ela. Mas Cafuringa não se assustou. Cortou parte da camisa, fez uma espécie de garrote acima da picada. Em seguida, desembainhou o facão, cortou uma vara de marmelo e passou a espancar a cascavel. Quando a cobra já não dava mais sinais de vida, ele a colocou num buraco de um cupinzeiro. Foi para casa. Ao chegar a sua residência, mandou seu sobrinho em busca de um contraveneno na casa do velho Major Saraiva. Foi medicado, cumpriu resguardo e não teve maiores problemas.
         Depois de um período de repouso o velho Cafuringa passou a caçar não apenas as presas costumeiras, também, cobras. Resolveu não dispensar mais nenhuma. Parecia uma espécie de vingança contra o mundo das serpentes. Quando ele capturava uma, media um palmo a partir de cada extremidade da cobra e cortava. Ali era o excesso. O que ficava, o meio, era levado para casa e cuidadosamente tratado. Depois de salgada, a carne era levada ao sol. Seca, era consumida assada, como se fosse um peixe ou assemelhado.
           Os anos se passaram. Algum tempo depois, Cafuringa já ostentava a fama regional de comedor de cobra. Quando algum caçador ou vaqueiro da região encontrava alguma serpente, sempre que podia, presenteava Cafuringa. E ele agradecia com um tímido sorriso amarelo.
           Quem visitava Cafuringa preferia não usar os mesmos copos usados pelo comedor de cobras. Nas residências por onde passava, os utensílios usados por ele, por dificuldades no descarte, passavam por um rígido processo de higiene. Tenho uma tia que, certa vez, chegou a descartar um copo de alumínio que até então, era de uso exclusivo dela; mas, por um descuido, num determinado dia, o copo foi usado pelo velho Cafuringa.
          E assim ele seguiu caçando e comendo cobras. Parecia não estar muito preocupado com o que pensavam ou diziam sobre ele. E, quando o peso da idade e as doenças já não permitiam que saísse à caça de cobras, ele fazia encomendas e pagava pelo serviço.
          Quando Cafuringa já se encontrava num estado bastante doentio, deixou de saborear cobras e passou a ingerir remédios caseiros para curar as doenças que se instalaram em seu corpo. Certo dia, Curdulina Neves, uma vizinha, constatou que o corpo de Cafuringa estava em estado de putrefação; estava sendo corroído por “bichos”.
            Morreu e foi velado por um punhado de sentimentos amarelos.

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos do Vigário e outras Picaretices" - Julho de 2016