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Ló Martins de Andrade
Ilha de Marajó / PA

 

Nem tudo é mentira

 

   Todos dizem que sou mentiroso. Quando chego a qualquer lugar vão logo dizendo: “ei, conta uma aí”. Moro na cidade que é o portal do Marajó. Não fica bem pra ninguém de Ponta de Pedras ficar falando assim de um conterrâneo, mas tudo tem uma virada um dia.
Sou “amasiado”, “junto”, “encostado”... Como a lei costuma dizer, uma união consensual. Meu nome é... Bem, pode me chamar como todos me chamam. Sou "tijuca". Poucos conversam comigo, dizem que sou gabola. Um dia disse que o cara tinha “enterrado até onde o sabão não lava”. Me ignoraram antes de terminar a história. Estava falando do cara que esfaqueou
o outro “até o cabo”, ou melhor... desculpe, profundamente. Estou ansioso para falar com alguém uma história que vivi. Não sai da memória aquele dia. Estava muito ansioso a ponto de não controlar o tic-tac do relógio biológico. Não era nenhuma novidade, mas mesmo assim o timbalar do sono insistia em dizer o contrário.
Não sei precisar, mas só houve, durante a noite, apenas uma hora e meia de descanso. Como só tenho uma pessoa que fica atenta as minhas palavras, falo só pra ela. Essa pessoa é você leitor. Ouça-me porque tenho que dizer.
Vivi uma noite bem aproveitada... Já pegando uma condução apropriada para continuar o desafio de fazer tudo direito, se preciso outra vez, com convicção e segurança. Geralmente em uma situação como aquela, transmitir segurança é fundamental.
Chegar a um lugar e perceber todos olhando é outro desafio. Mas tudo bem... Vamos em frente... Se for para enfrentar algo que seja tudo de uma vez. O primeiro passo é vencer o constrangimento e a vergonha, até mesmo a timidez. Pronto! Ok!
Vejo o sinal e digo: - Vamos... Por aqui!
- Vai logo à frente.
- Obrigado - digo ao porteiro.
Que alívio até então. Tudo dentro do previsto. Estamos dentro do quarto. Dentro de quatro paredes observa-se tudo... Os mínimos detalhes.
O lugar não é dos melhores. Também quase de graça o que poderia exigir. Tinha uma decoração simples, com iluminação não muito adequada, uma lixeira, banheiro dentro – por sinal muito higiênico – tomadas e nas tomadas. Ah! Nos quatro cantos havia números em sequência. Algo que chamou atenção foi a saída de oxigênio. Pensei. Esses caras pensam em tudo. Como não poderia faltar em um quarto, lá estava, uma cama.
Como faço sempre nessas situações inesperadas, fui logo procurando dar carga no aparelho celular para não deixar de ser encontrado. Sei que nessas horas tudo pode acontecer e a falta de comunicação parecerua muito suspeita. Como havia um par de gêneros, fui verificar as condições da cama. O colchão não é dos melhores. Sem problema agente dá um jeito. Uma balançada forte para ver a situação física do quatro pernas.
É uma pessoa pesa mais de 70, a outro... Bem melhor não comentar. Naquela situação uma cama era mais uma companhia. Vez ou outra olhava no corredor a espera não sei do que. Naquele quarto parecíamos desorientados. Tentei tirar um cochilo em algum momento, não deu. O incômodo não deixara. A cama começa a ranger a simples movimentos. Peço permissão e faço os reparos necessários, não adiantou muita coisa. O ranger durou até o nascer do sol.
- A cama desconcertante, diz alguém.
- É companhia “a fome é muita, mas a farinha é pouca”.
Hum... Não consegui pegar no sono. Quando fui àquele ambiente sabia que dormir não é prioridade. Tudo bem.
- Cama disgramada!, reclama pra mim.
- Há tanto ranger que pensava está montado na velha bicicleta que deixei do outro lado da baia do Marajó, diz outra pessoa.
Ouço vozes. Penso que é alguém conhecido. Puxa! Não é!? Não.
Não sei se isso é bom ou mau. No começo ouvimos música, conversamos, saí para comprar lanche, fiz algumas leituras... Tudo pra quebrar a tensão e ansiedade.
- Quando vamos fazer algo que nos exige boa vontade, ânimo, prazer e amor, temos que sentar a cabeça no travesseiro da paciência e saber esperar o momento, fala alguém a minha direita.
Depois de horas e horas de espera, chega a hora “H”. Não dá mais pra adiar. O que tem de ser feito será e o que tiver de acontecer, acontecerá. Fico torcendo para que nada seja frustrado, afinal foi uma verdadeira batalha para chegar até aquele momento. Houve muita conversa estratégica, muitos questionamentos, muita discussão.
Ouço uma voz: “- é agora!” Vamos.
- Tá certo, estou contigo.
Pensei que iria demorar mais tempo –  não me preparei para durar pouco tempo – para acabar. Tudo concretizado... Agora é só relaxar e... descansar.
- Fazer outra vez, nem pensar. Pelos menos fiquei feliz por ter dado certo.  Foi um esforço tremendo para conversarmos e a coisa vingar.
Imaginas só. Mesmo nessas condições, sem nenhum dinheiro no bolso, está fazendo algo como aquilo. Nem sempre vivo coisas assim. Como sou amante das oportunidades, por alguns dias vivi a nostalgia de estar com alguém ao meu lado por eternos momentos.
Por um dia vivi a alegria de ser acompanhante, de um velho amigo num leito de hospital.
E você pensou que era o quê?
- Ei, nem tudo é mentira ou gabolice.
Mas só quem sabe disso é...?
Você.

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos do Vigário e outras Picaretices" - Julho de 2016