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Teresa Cristina Cerqueira de Sousa
Piracuruca / PI

 

Carrinho de latas de sardinha

 

A cachaça e o jogo de baralho viciaram meu pai. Como resultado nossa família passou fome. Lembro-me bem de estar em casa com mamãe e meus irmãos sem nada para comer. Eram dias em que a vizinhança com uma solidariedade férrea nos dava um prato de feijão com arroz.
Justamente pela falta de alimento antes do horário escolar, é que meus irmãos Torote e Alexandre faltavam à escola.
Mas dentre todas as ocasiões vividas em minha infância, uma foi marcante para mim.
O ano de 1973 foi muito difícil. Eu tinha onze anos e estava no último ano do primário de uma escola no interior do Piauí.
Meu horário de voltar da escola era por volta do meio-dia. Nesse ano, perto da Semana Santa, as casas das margens do rio Piracuruca eram só cheiro de peixe e de lama barrenta, que se acumulava nos troncos das árvores ribeirinhas trazida pelas enxurradas. Toda a água dos riachos da cidade e a sujeira das ruas, após as chuvas, desciam para o rio.
Uma tarde, creio que no Domingo de Ramos (na ocasião já fazia dois dias que meu pai não aparecia em casa), meus irmãos e eu estávamos correndo na rua de terra com a molecada da vizinhança quando meu pai surgiu montado em sua bicicleta.
Paramos de brincar de imediato.
Mas no ensejo ele não estava bêbado! Devia era ter passado os dois dias jogando baralho.
Achei que ele fosse dar uma surra em meus irmãos, quando eles nos rodearam e fizeram o pedido. Eu estava sentada no chão lavando os pés de papai numa bacia com água. Eles queriam ovos de páscoa! E eu também.
E fui dormir naquela noite imaginando o sabor do chocolate, pois meu pai tão somente sorriu largo com aquela ruga na testa marcando que ele estava feliz.
Meu pai era enfermeiro de ofício.
Ele saía por volta das sete da manhã quando ia ao trabalho. Trabalhava de segunda a sexta. E agradeci muito a Deus porque meu pai tinha dormido em casa na noite anterior ao Domingo de Páscoa. Que bom que esse dia chegou!
Logo cedo, meu pai entregou os carrinhos feitos com latas de sardinha e pneus de tampas de vidro de injeção. Eu até distingui nos brinquedos o cheiro de penicilina!
E os meninos o olharam sem entender.
O rostinho deles era sem graça, mas devido à simplicidade da vida e ao espírito da curiosidade pelos carrinhos, não choraram e receberam o presente.
Eu me decepcionei com meu pai.
E fui saindo da sala de cabeça baixa rumo ao quintal quando ouvi:
— Nena! Sua madrinha Iaiá lhe mandou um livro de historinhas.
Assim, pude conhecer os Contos Maravilhosos e li essas histórias e muitas outras a partir daí.
E meus irmãos aprenderam a fazer seus próprios brinquedos e tivemos uma infância natural. Afinal, meu pai tinha outros ofícios e aprendemos alguns. Minha mãe diz que eu gosto de sentar e contar histórias porque é coisa herdada dele.

(Para a memória de meus irmãos: Torote e Alexandre)

 
 
Conto publicado no livro "Contos Selecionados de Grandes Autores Brasileiros" - Maio de 2016