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Rubens Alves Ferreira
Taguatinga / DF

 

Moleques

Nos arredores de um parque de diversões, ouvia-se os sucessos nacionais do momento: a pílula do Odair José, o domingo feliz de Ângelo Máximo, a impossibilidade de acreditar no amor perdido do Márcio Greyck; Paulo Sérgio, o bom rapaz Wanderley Cardoso, os detalhes do Roberto, a briga de Diana, “Reiginaldo” Rossi, o carrossel do parque e o mundo girando com Jerry Adriani... entre outros sucessos do início da década de setenta em Formosa de Goiás. Aproximando -se do parque os dois garotos notaram uma vespa/lambreta com a chave na ignição e tiveram a ideia de pegá-la, não se sabe para quê – talvez por causa do chaveiro. Circularam pelo parque olhando os brinquedos, o tiro ao alvo em doces e brinquedos; o outro tiro em cigarros e as bancas de jogar argolas. Durante esse tempo, estavam sendo observados e foram abordados pelo dono da motoca. No nervosismo e confusão, o maior deles perdeu o chaveiro. Foram arrastados a cascudos e puxões de orelhas sob ameaça de polícia e tudo o mais, por um interminável tempo; até que, com todos procurando, conseguiram localizar o chaveiro e os moleques foram liberados depois de um longo “sabão” e orelhas quentes.
Jericó tinha uns sete irmãos (quatro mulheres), todos com praticamente os mesmos traços cafuzos. Já entrando na adolescência, tinha entre 12 e 14 anos, moreno, estatura média para a idade, olhos negros e cabelo liso, grosso, cortado médio e penteado partido ao estilo Iê-iê-iê. Carlinhos era um pouco mais claro, estatura pequena, entre oito e dez anos, olhos castanhos escuros e cabelo, crespo, sem corte e despenteado. Tinha três irmãos, dos quais, dois trabalhavam na roça plantando sob o regime de meia – capina na enxada, sob sol forte e semeadura com as mãos (ou matraca) – tudo rudimentar; o outro irmão e mais duas irmãs encontravam-se dispersos por casas de parentes.
Jericó e dois irmãos menores (Jeová e Jonas), juntamente com Carlinhos e outros meninos vizinhos andavam juntos. No tempo de seca, corriam do redemoinho para não ver o capeta no seu interior e provocavam queimadas nos lotes vagos e sem muros para procurar coquinhos e outros achados. Em época de chuva, para não ficarem em casa reclusos, faziam “olho de boi” no chão molhado (simpatia para não chover que consiste em fazer um desenho no chão girando sobre o calcanhar e traçando um círculo com a ponta do dedão). Era um tempo bom, de autêntica molecagem. Tempo de colecionar e esconder estórias...
Jericó tinha ascendência sobre a turma. Era comum a coleta de materiais recicláveis no raio de três a cinco quilômetros de suas casas. Cobre e outros metais, conseguidos na rua e também em oficinas abandonadas (abandonadas – domingos e feriados). Tais atividades demandavam tempo e cansavam bastante. A colheita de estrume e ossos, geralmente se dava ao redor da Lagoa dos Santos e adentrando as fazendas próximas à cidade. As sacas de estrume que saiam vazias, iam tomando volume até encher, carregadas sobre a cabeça. Na lagoa, era comum uma parada para a colocação de arapucas, tiros de estilingue e para um mergulho. Carlinhos não sabia nadar; mas, o poço era demarcado de margem a margem e atravessado em um único pulo e mergulho. Quando a seca aumentava, os peixinhos se atolavam na lama das margens e bancos de barro e ficavam a se debater. Na cheia, a lagoa era, apenas, observada e abordada pelas margens. Era muito grande, perigosa e vazante da maior parte do escoamento pluvial da cidade, tinha as margens naturalmente tomadas de mato, diferente da outra lagoa – turística e com alguma estrutura nas margens – a Lagoa Feia, só que muito afastada da cidade, nunca era visitada pelos meninos.
Nas fazendas, rompendo a coceira e o cheiro do capim manteiga, percorrendo riachos, matando a sede e se refrescando nos regatos límpidos, cristalinos, andavam vigilantes, sob o zumbido do silêncio extremo, com medo dos vaqueiros, peões e donos, que de vez em quando, gritavam de muito longe. Havia sempre o risco de um tiro de advertência e umas reprimendas. Era muito bom, exceto no dia em que o irmão do Jericó – o Jeová –, descambou morro abaixo dando cambalhotas e saltos mortais e inacreditavelmente quase não teve arranhões: Deus realmente protege as crianças e os bêbados. Carlinhos não gostava de fazenda sem morros. Fazenda plana dava uma tristeza danada... imagina! O que seria do pasto e da lavoura.
Em todas essas andanças, uma hora batia a fome. Então a atenção era desviada para a procura de coquinhos (Butiá), jatobás, raízes, cascas (tinha um tal de pau doce que o Jericó recomendava e todos achavam muito ruim), cagaitas, cajus e palmitos de coqueirinhos arrancados pela raiz; além de mangas dos quintais. O jatobá era difícil de engolir e causava sede. Para alimentos mais consistentes, o Jericó planejava outros procedimentos. Em certa “oportunidade” pararam em uma mercearia, e como não havia ninguém na recepção – só se ouvia vozes no interior da casa – deram a volta pelo balcão e pegaram pudins e bolos e saíram correndo. Não sem chamar a atenção de um rapazola que acabava de aparecer e que saiu na perseguição. A certa altura, ele parou e disse que os conhecia e a seus pais. Os primos pararam e olharam para trás. O rapaz perguntou: “ qual o nome de vocês? ”. Ninguém respondeu. Ele insistiu: “qual o seu nome? ” – Perguntou apontando para o Jericó que era o maior –. O Jericó parou, mordeu o bolo, pensou um pouco e teve a brilhante ideia de dar o nome do próprio pai, respondendo com a boca cheia: “Veridiano”. Em outra ocasião, visitando a sua irmã Judite no seu local de trabalho, Jericó foi encarregado de levar uns quitutes para a mãe, Dona Sinhazinha, e para os irmãos dele. No caminho de volta, conversa vai... conversa vem... comendo estrada e comendo as encomendas, nada foi entregue.
Carlinhos não era culpado pelos malfeitos. Era Jericó, pelo fato de ter maior idade e ser o portador dos recados, compras e outras missões dos pais e avós. O Carlinhos era apenas uma criança – como dizia a avó. E as estórias se seguiam...

 

 


 
 
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Março de 2016