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Lourival da Silva Lopes
União / PI

 

Purgante de azeite de mamona

 

       A vida é uma aventura na qual mergulhamos sem saber, de certeza, o que vai acontecer. Pode ser grande, pequena, misteriosa, cheia de traumas, perigosa, prazerosa, enfim, viver é uma aventura. E começa tudo na gestação, ou muito antes, quando dois estranhos se encontram, cruzam olhares, se aproximam, se conhecem, se apaixonam e decidem que vão morar juntos. É estranho, mas é o que acontece, quase sempre.
Meu pai veio das bandas de Luzilândia, no final da década de 1940, para aportar na localidade Corrente, com os irmãos e irmãs, sob o comando de Papai Joaquim. Minha mãe, das barras do Marataoan, na companhia de meu avô Cristino Simão, negro de descendência escrava, e de minha avó, uma branca de olhos agateados, que nunca se perdoara por ter casado com um neto de cativos. Chegaram ao mesmo lugar em que a família de meu pai estava, na década de 1950. Minha avó reclamava, constantemente, que seu casamento com meu avô Cristino só podia ter sido feitiço, serviço de macumbeiro, bruxaria.
- Ah, meu filho – confessava-me, você não sabe é de nada. Eu era noiva de um primo, branco e rico, pois o Cristino, viúvo e negro, fez umas orações, acho que era de São Cipriano, Deus que me perdoe, e me enfeitiçou. Larguei meu noivo e me casei com aquele negro, que já tinha uma reca de negrinhos. Como pode, meu filho? Ele era famoso, lá no Canto do Riacho, perto da Puba. Separava casais e ajuntava também. Até bicho desaparecido ele fazia aparecer.  O negro era macumbeiro. Ora, vim parar com ele nesse fim de mundo, com um monte de menino pequeno. Parece uma sina.
Desse desencontro, meu pai conheceu minha mãe, que tinha apenas dezesseis anos. Era uma mulher bonita, faceira, caindo rapidamente nas graças dele, muito mais velho do que ela. Meu pai trabalhava na plantação de fumo, nas vazantes do rio Parnaíba. Era de uma família de gente trabalhadora, de pouca leitura, simples como a terra.
Casaram-se. Não me recordo o ano. Pelo meu nascimento, sendo seu segundo filho, imagino que tenha acontecido o casamento em 1956, pois em 1957, já estava grávida de sua primeira filha, que morrera aos seis dias de nascida. Eu nasceria no ano seguinte. E, para falar a verdade, quase nasci no rio, pois minha mãe, quando sentira as dores do parto, estava batendo roupa. Mal deu tempo de chegar a casa. Sorte que mãe Felícia, a parteira, já estava lá em casa há um mês para me receber com o carinho e as bênçãos de quem sabia que o sofrimento é a causa da vida. A vida, sabia ela, era apenas consequência. Quando as palmadas, na bunda da criança, a fizeram chorar, meu pai foi chamado às pressas. Ele, que se encontrava na roça, plantando milho e feijão. Ao chegar a casa, foi direto à caixa de foguetes.  De longe, ouvia-se o pipocar dos sete tiros, que anunciavam a chegada do menino.
Em pouco tempo, com leite de peito e mingau de puba, o menino já caminhava. E, com menos de um ano, falava muita coisa.
Com três anos, levantava de madrugada para acompanhar meu pai à vazante, para quebrar fumo e depois empilhar nos estaleiros para secar. O orvalho da manhã, a frieza do tempo e o sereno de vez em quando me fizeram asmático. Não havia remédio. Minha mãe preparava uma mistura de azeite de mamona com açúcar e me dava para engolir, para aliviar a tosse e o cansaço. Todo dia, eu tinha que tomar esse purgante, que era a única alternativa que meus pais tinham. Virou uma tortura. Me dava vontade de vomitar. Mas sem outra opção, e diante da falta de ar, não me restava outra coisa.
Um dia, decidi. Prefiro morrer a tomar azeite de mamona com açúcar. Tinha cinco anos. Minha mãe me chamou. Meu Deus, purgante de novo. Não aguento. Chorei, resmungando:
- Não quero tomar isso, mamãezinha. Não aguento mais.
- Você vai tomar. Como é que pode ficar bom?
- Não! Não! Não Aguento!
Corri ao redor da casa e minha mãe só me cercava. E me ameaçava também. Se não tomasse o purgante, apanharia.
Até que minha mãe me pegou com jeito. Puxou-me pelo braço. Sentou-me em suas pernas. Apertou meu queixo com tanta força com a mão esquerda que não teve como não abrir a boca. Com a outra mão, encheu a colher do purgante, que estava em uma xícara sobre a mesa, e colocava à força em minha boca. Eu enguiava. E ela raspava o que escorria pelos cantos da boca, empurrando goela abaixo. Acabava uma colherada, botava outra, até secar a xícara. E eu me acabando de chorar, mas um choro preso, que saía pelos cantos da boca e pelo nariz.
Foi uma grande tortura que não deu em nada. Não fiquei curado. Continuei asmático por muito tempo. Só depois que completei quinze anos é que desapareceram o chiado no peito e a falta de fôlego.   
    

 

 
 
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Março de 2016