Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Renato Dutra
Taubaté / SP

 

Nós estamos programados para receber

 

      Ele estava de volta. Sentia-se bem. Dirigia o carro preferido. Muitos consideraram o carro ruim para o serviço. Ele não ligava, depois de muito tempo, estava de volta e não o deteriam.
                No rádio, tocava “Back in black, I hit the sack/ I've been too long/ I'm glad to be back”. O opala SS 1978 laranja boreal voava pelo asfalto daquela estrada. A lua cheia ocupava seu lugar de destaque no céu.
Estava adiantado. A entrega seria à meia-noite. Isso lhe dava uma hora de vantagem. Faria uma pausa. Ninguém o importunaria. Parou na beira da estrada, tirou de baixo do banco, do lado do 38’, uma garrafa com um pó que despejou em cima de seu RG. Arrumou-o em uma fiada e com um canudo de papel mandou o pó narina a dentro.
                Deu partida no opala e seguiu para o ponto marcado. Faltava pouco, ele se veria livre daquela “droga de viadinho” que entupia o porta-malas do carro. “I'm on the highway to hell/ I'm on the highway to hell/ I'm on the highway to hell”. AC/DC sempre o deixava calmo, desde antes de ele ser “guardado” por meia década. Ele achava que não precisava de mais nada, bom carro, empregado (não perdeu seu status na quadrilha) e boa música. Porém, um farol alto e uma sirene, cortaram o barato.
               - Para o carro! - berrou o policial.
                Tocava “Hey Mama! Look at me/ I'm on my way to the promise land. Wow!/ I'm on the highway to hell”, quando ele acelerava a máquina. Nunca um carrinho de plástico será páreo para um opala SS, pensou e riu.
              - Central, viatura em perseguição a um opala laranja. Estrada da Granja Km 75, norte. Berrou o rádio de todas as viaturas.
                Os autofalante reverberavam com os Eagles: “On a dark desert highway, cool wind in my hair/ Warm smell of colitas, rising up through the air”.
               - Veículo suspeito se aproximado. Repito, veículo suspeito se aproximando.
                Apenas percebeu a barreira montada para detê-lo quando estava perto demais. Frear não era uma opção. Acelerou. Abriria a barreira no peito.
                Entre o momento que avistou a barreira e o no qual passou por ela, levando no belo para-choque cromado tudo o que encontrou, Don Henley cantava: “Welcome to the Hotel California/ Such a lovely place/ Such a lovely face/ They livin' it up at the Hotel California/ What a nice surprise, bring your alibis”. Fora do carro, a trilha sonora era o som de metal contorcido, vidro estraçalhado e tiros.
                Comemorou a vitória. Por um momento, chegou a pensar que não sobreviveria àquela noite; mas, tudo dera certo. Baixada a adrenalina, ele não via nenhum farol atrás de si. A única referência à perseguição era o som de sirenes ao longe. Percebera a sacada que tivera ao fugir. Tinha parado o carro atrás de um barranco, encoberto por uma árvore e desligado o carro. Ninguém o acharia ali e ele completaria o serviço e voltaria para casa.
                Deu partida. O motor não funcionou. Nada funcionou. Ele não poderia se arriscar a passar a noite ali e ser pego pela polícia. A única saída era buscar ajuda. Saiu do carro, verificou se o porta-malas estava trancado, pois não conseguiria levar consigo quase cem quilos de maconha.
                Margeou a estrada, atento para não ser visto por nenhum carro que ali passasse. Uma hora depois, enxergou uma luz fraca afastada da estrada.
                Mais perto, percebeu que a luz vinha de um hotel. Sentiu o cheiro morno de maconha e pensou que deveria ter trazido um pouco do material no porta-malas. Venderia fácil ali. Entrou, tocou a sineta e foi atendido por uma mulher que veio até ele carregando um castiçal.
                A recepcionista apontou um corredor iluminado por velas indicando-o o caminho. Descendo o corredor, imaginou ouvir vozes cantando. Quando foi perguntar o que era aquilo, percebeu: estava sozinho. Entrou em seu quarto e foi descansar.
                Dormiu antes de encostar a cabeça no travesseiro. Todavia, foi acordado por vozes que cantavam: “Um lugar tão encantador/ Um rosto tão encantador/ Muitos quartos no Hotel Califórnia/ Qualquer época do ano, você pode nos encontrar aqui”. Sabia que conhecia aquela letra, mas não se lembrava.
                Saiu do quarto e foi ver de onde vinham as vozes. Andou por corredores desencontrados até ter certeza de que estava perdido e não encontraria mais seu quarto. Então viu os vultos daqueles que dançavam no jardim e cantavam constantemente a mesma música.
                - Alguns desses aí dançam para lembrar; outros, para esquecer. Mas, não temos tempo. Se quer sair desse inferno, me ajude.
               - Quem é você?- Perguntou. O outro não respondeu, apenas entregou-lhe uma faca de aço.
                Seguiu o misterioso homem. Não tinha nada a perder e, ademais do demais, tudo naquela noite estava estranho mesmo.
                Chegaram numa suíte com espelhos no teto e champagne rosa no gelo. Deitada na cama, uma bela mulher com camisola transparente. Mas, a cada bruxulear da vela, a bela se transformava em algo horrendo, repulsivo e enrugado.
                Atacaram a fera. Mas, as facas não feriram a besta. Assustado, ele fugiu corredores adentro.
                Deus sabe como, ele conseguiu encontrar a recepção. Viu a porta que o levaria para fora daquele inferno. Abriu-a e saiu correndo. Porém, para sua surpresa, estava de volta na mesma porta pela qual entrou. Isso repetiu-se por três vezes até ele perceber a presença de um homem atrás do balcão. O homem noturno esticou seu braço como nenhum mortal poderia fazer e agarrou-o pelo colarinho, puxando-o com força. Ele foi arrastado por aquele braço sobrenatural, com tanta velocidade que a paisagem passava por ele como borrões. Quando parou, aquela mão agarrava sua nuca, empurrando sua cabeça pela janela aberta do opala batido até que ele visse seu próprio corpo caído com um tiro na têmpora.
                No segundo seguinte, ele estava de volta na recepção com o homem noturno que segurava uma vela a iluminar seu sorriso.
               - O que aconteceu? Morri. Isso é o inferno.
                Sem sair do lugar, o homem noturno sussurrou no ouvido dele: “Nós todos somos apenas prisioneiros aqui por nossa própria vontade”, “Nós estamos programados para hospedar. Você pode fazer o checkout a qualquer hora que desejar. Mas você nunca poderá ir embora”.

 
 
Conto publicado no livro "Contos de Verão" - Março de 2016