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Gabriel Antonio Ogaya Joerke
Cuiabá / MT

  Sempre à meia-noite

   

 

           O silêncio, quase sepulcral, era quebrado, amiúde, à meia noite, quando o telefone tocava. Após um tempo de melindres e silêncios, dois amigos septuagenários reataram a amizade de longa data. Conheceram-se ainda jovens, no curso pré-vestibular na cidade de Goiânia. Cheios de sonhos e ilusões, não demoraram a tomar rumo de formação acadêmica. Um, findou o curso de Agronomia, o outro mergulhou na Medicina. Formaram-se, casaram-se, tiveram filhos e, agora, com visitas esporádicas de netos, tentavam preencher seus tempos.
            A velhice tem lá suas vantagens e desvantagens: maturidade ou teimosia; tolerância ou implicância, doçura ou rabugice, bondade ou indiferença; paciência ou fleuma; altruísmo ou mesquinhez; benevolência ou desprezo e, por ai vai. Dizem que, com o passar dos anos essas características se destacam nas pessoas, tanto positivamente quanto como estigmas.
            A essas condições internas aos indivíduos irão se somar outras, a priori, externas: ausência gradativa de membros da família, viuvez, casamento dos filhos e, aposentadoria. Esta, embora muito esperada por tantos, poucos se preparam para tanto. O pijamão e as pantufas, com o passar do tempo cansam; a casa fica pequena para passar as horas; as visitas diminuem quase se restringindo a datas tradicionais. Ai surge a tão temida solidão.
            No afã de preencher o tempo, os registros fotográficos e fílmicos, de momentos familiares, aliviam a sensação de vazio, não obstante a ânsia continua. Alguns se aventuram na busca de amigos virtuais nas redes sociais; outros procuram grupos específicos de afinidades (música, poesia, teatro, etc). 
            Mariano, agora aposentado, passou suas atividades pecuárias aos filhos. Todavia, o pijamão e as pantufas logo, logo, lhe causaram incômodo. Aprendeu a comunicar-se nas plataformas das redes sociais, onde abrira um leque de amizades. Por sua vez, Eduardo que, ainda trabalhava num hospital, era um tanto avesso às questões tecnológicas, resistia o quanto podia. Foi através desses recursos que encontrou, depois de alguns anos, o amigo Mariano. Já septuagenários, com muitas experiências de vida e poucos a quem socializar, a dupla estava formada. Os papos eram tão longos que se assemelhavam a palestras sobre longevidade. Nada de mais, se não fosse por um detalhe, as longas conversas se davam por telefone.
            Eduardo prestava plantão num hospital municipal, dia sim, dia não. No final da noite, mais especificamente à meia noite, o telefone tocava e a ligação era transferida para o quarto de descanso dos médicos.
            -  Doutor Eduardo, seu amigo, o senhor Mariano ao telefone.
            - Pode transferir a ligação. Obrigado. – respondia o doutor Eduardo à telefonista. A conversa atravessava a noite. Namoros na juventude, dificuldades na universidade, filhos e netos, lembranças de outros colegas, situações inusitadas, datas marcantes, entre outros assuntos teciam o papo dos amigos, sempre à meia noite, dia sim, dia não.
            Certo dia, bem cedo, o doutor Eduardo recebe a notícia que o amigo Mariano sofreu um acidente de carro na rodovia que dava acesso a sua fazenda, vindo a óbito. Foi um choque. Esse dia o doutor Eduardo estava de folga, acompanhou as condolências e despedidas ao amigo. Jazia lá, inerte dentro do féretro; tivera vontade de abraçá-lo, conteve-se. A morte sempre nos lembra sobre a nossa finitude. Cabisbaixo e pensativo, o doutor voltou a casa. Assim, ficou o dia todo. Ontem aqui, hoje não mais, pensou. E, agora, não teria mais o amigo para os papos e confidencias. Um vazio se apossou. 
            Ao dia seguinte, como de costume o doutor Eduardo compareceu ao plantão no hospital. No final da noite, dirigiu-se ao quarto de descanso. Chegando lá, não lhe saia da mente a imagem do amigo. Parecia mentira. A horas mortas recostou-se sobre a cama e fechou os olhos; as reminiscências atravessavam seu pensar por um tempo. A folhas tantas:
            - Ring! Ring! Ring! – o telefone o sobressaltou.
            Olhou para o aparelho, voltou-se para o relógio na parede do quarto, marcava exatamente meia noite. Sentiu, nesse momento, um calafrio na espinha. Ficou esperando o telefone parar de tocar, sem se mover. Não poderia ser Mariano, pois já tinha falecido e agora estava de pés juntos. Levantou-se, com os batimentos levemente acelerados, e dirigiu-se à portaria do hospital. Perguntou apreensivo à telefonista:
            - Lídia, por acaso alguém me ligou?
            -  Não, doutor Eduardo. Ninguém ligou. Por quê?
            - Por nada. – respondeu-lhe. À francesa dirigiu-se para a calçada do hospital.
            -  Doutor, o senhor vai embora? – perguntou-lhe a telefonista.
            - Vou tomar uma fresca aqui fora. – respondeu-lhe.
            Precisava mesmo de uma fresca. Dai por diante, vez por outra, o telefone tocava, sempre à meia noite. Doutor Eduardo, não atendia, por precaução.

 

 

 
 
Conto publicado no "Histórias (incríveis) da meia-noite" - dezembro de 2016