Primeira vez neste site? Então
[clique aqui]
para conhecer um pouco da CBJE
Antologias: atendimento@camarabrasileira.com
Produção de livros: cbje@globo.com
Contato por telefone
Antologias:
(21) 3393 2163
Produção de livros:
(21) 3547 2163
(21) 3186 7547

Gabriel Antonio Ogaya Joerke
Cuiabá / MT

 

A vida tem dessas coisas

 

 Dois cinquentões, Lorenzo e Zacarias, em uma cafeteria, se esforçam em colocar a conversa em dia, após uma temporada sem se verem. Entre outros assuntos, Lorenzo puxa o fio da memória do amigo:
- Você lembra que te contei uma vez, quando ainda fazia o curso de Belas Artes na Universidade, sobre o fato de que, meu pai, tinha uma amante, né?
- Ah! Sim; vagamente me lembro dessa história. ̶ respondeu Zacarias.
- Pois é, eu me lembro como se fosse hoje, aquela situação pela qual passei. Eu odiava essa tal amante do meu pai, a qual fazia minha mãe sofrer muito; e, o pior de tudo, sofrer calada. Foram longos anos de infortúnio.
- Certo dia, sai da Universidade e, como de costume, peguei o ônibus, isso de onze e meia da manhã, para ir ao trabalho. Já dentro do veículo, busquei e avistei um lugar vago, do lado do corredor. Sentei-me. Não demorou muito, percebi que alguém a meu lado, ou seja, junto à janela, me olhava de baixo para cima, com extrema curiosidade. Estava tão absorto em meus pensamentos e problemas de acadêmico, que não tinha percebido. Virei, discretamente, a cabeça para a direita e, me deparo com uma criança de aproximadamente quatro ou cinco anos, com os olhos grandes e vivaces me fitando. Além da minha mochila com roupas e apetrechos, ainda carregava outros livros na mão. O menino não parava de me observar; de certa maneira gerando certo desconforto. Não demorou muito e eis que uma vozinha, quase angelical, me pergunta:
- Quer que lhe ajude com seus livros?  - acenando com suas mãozinhas para que eu os colocasse no seu colo, enquanto balançava suas pernas, ainda curtas, sem atingir o solo do veículo. Não pude resistir à tamanha gentileza e sensibilidade. A partir desse momento, fui eu que, furtivamente, o observava com encanto; ele mantinha os livros no seu colo com todo cuidado, vez por outra os ajeitava em virtude dos solavancos do ônibus. Vez por outra, me dirigia seu olhar lânguido e um tanto questionador. Confesso que a criança me despertara sentimentos paternos de admiração e encantamento. Não resistindo, perguntei-lhe:
- Qual é seu nome?
- Tiaguinho - respondeu-me, voltando-se para mim. Falou-me sua idade, embora me falhe a memória agora. Fiz-lhe outras perguntas e, ele, espertamente respondeu.
Em certo momento, já muito desinibido e seguro, indagou-me, como se já soubesse a resposta:
- Você gosta muito de ler, né? – parecia obvio pela quantidade de livros que levava, imaginei. Respondi-lhe com outra pergunta:
- Por causa de tantos livros que eu tô levando, você acha que gosto de ler?
Ele, prontamente, respondeu:
- Não. Porque meu pai me falou que você sempre gostou de ler. Também falou que quando eu crescer ficarei igualzinho a você, bastante inteligente.
Não entendendo a situação o fitei e, agora sim, curiosamente, perguntei-lhe de onde me conhecia. Ao que ele respondeu:
- Meu pai é também teu pai. Teu nome é Lorenzo. Eu sou teu irmão e gosto muito de você. Quero ser igual a você quando crescer.
Nessa hora, senti um calafrio em todo meu corpo, acompanhado de certa vertigem. Passado uns segundos, já recomposto, voltei-me para a criança que se me apresentara, naquela ocasião, como meu irmão, por parte de pai. Uma criança que tinha tudo para eu a odiasse. Todavia, nesses poucos momentos dentro do ônibus foi o bastante para amá-lo: seus olhos sinceros, seu sorriso acolhedor, seus gestos educados, enfim. Fiquei em silêncio um instante; parecera uma eternidade. Ele ainda me olhava, com imensa ternura e admiração. Chegou o momento de descer do ônibus, me despedi; agradeci por ter me ajudado com os livros; levantei-me para descer e, nesse momento, ele ainda me falou:
- Fiquei feliz em vê-lo. Vai me visitar. Minha mãe tá aqui atrás de mim sentada.  -  Acenei afirmativamente com a cabeça, sem sequer voltar-me para onde a mãe estava e, desci do ônibus. Mal pude sentar-me no primeiro assento que encontrei pela frente; debulhei-me em lágrimas. Dentre os sentimentos confusos que me torturaram nesse momento, o amor que senti pelo meu novo irmão foi o maior. Hoje o amo tanto quanto os outros que tenho. Pois, o contexto me remeteu às lembranças de minha infância no sítio. Sempre gostei de ler; a professora sabia disso e me ajudava a escolher o universo da literatura infantil. Passei o primário vivendo e sonhando nas entrelinhas dos livros infantis; todavia, escondendo outros tantos do pai que, fazia questão de dizer que, gostar de leitura era coisa de menina. E, agora, através do meu novo irmãozinho, confirmo a admiração que meu pai sente por mim e, se encarrega de repassar a seu mais novo rebento.
Voltei-me para meu velho amigo Zacarias que, silenciosamente, me escutava; vi seus olhos marejados. Suas mãos, já um tanto pesadas pela idade, pousaram sobre as minhas. A vida tem dessas coisas
.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Junho de 2016