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Leoana das Dores Oliveira
Arari / MA

 

Ilusão platônica

 

Seis horas da manhã. Marina desperta intrigada com o sonho premonitório que teve. Pensará nele o dia todo. E que dia longo! Quarta-feira.
O dia que fica no meio. Marina suspira tristemente ao perceber o quanto ela e as quartas-feiras se parecem, pois ela também é do meio.
Nascida e crescida espremida entre irmãos antes e depois. Irmãos mais velhos para dizer-lhe o que fazer. Irmãos mais novos para culpá-la por suas artes infantis.
Mas Marina já não é mais uma criança. Tem dezenove anos e recém-saída do Ensino Médio, com um emprego de atendente numa agência bancária num lugarzinho esquecido por Deus que as pessoas insistem em chamar de cidade. “Um dia saio daqui e ganho o mundo”, repetia todos os dias antes de sair de casa. Mas até lá, o jeito é juntar seus últimos cacos de coragem e encarar mais essa quarta-feira, mais esse dia. Um dia de muitos.
Enquanto distribui panfletos para as pessoas idosas que encontra, oferece empréstimos consignados, sendo repetidas vezes ignorada, olhada por transeuntes com a cara feia. Porque a feiura, pensa ela, vem carregada de ódio, de desprezo.
Procura entre a multidão quem quer fazer empréstimos. Pra gastar com o quê? Não interessa, lhe disse uma vez sua supervisora, seu trabalho é vender consignado. E é o que Marina resolutamente faz.
Em seu piloto automático ela valsa pela agência, argumentando, panfletando, e decepcionando-se uma vez após a outra. Mas ela insiste. Uma moça de sua idade que trabalha num banco é algo, segundo ela acredita, pra se orgulhar. Quando um estranho lhe pergunta sobre seu emprego: “Trabalho no banco”, ela responde. Só isso é suficiente para o estranho lhe dar olhar embasbacado. “Grande coisa!”. Mas não é. Marina sabe que pode ir mais longe, e pensando assim não vê a quarta-feira passar. Só consegue ver a longa fila que vai aumentando cada vez mais, à medida que o sol vai despontando, as horas vão passando e o cansaço vai chegando.
Nove horas. Hora de verificar e-mails, andamento de propostas e outros afazeres na internet. Quem sabe alguma amiga está on-line pra jogar conversa fora enquanto o dia não termina.
De relance ela o vê. Radiante como sempre, com seus cabelos bem penteados, sua roupa feita sob medida. O personagem principal de seu sonho de mais cedo. Aliás, da maioria de seus sonhos. Ele sempre estava lá, sorrindo em sua direção. Mas no sonho ele estava sentado em sua calçada, os cabelos compridos e a barba por fazer, analisando que em dez anos ambos estariam diferentes: ele divorciado e ela solteira. Era a primeira vez que sonhava assim. Por isso tomou como sonho premonitório.
Mas agora ele estava ali, em carne e osso. Tão diferente do seu sonho como a água é diferente do óleo. Lá estava ele com cabelos cortados curtos e a barba bem feita, no fim de uma fila enorme que capengava e teimava em não andar. Lá estava ele, olhando em sua direção, com seu sorriso único, carregado com o charme que só aqueles que possuem aparelhos ortodônticos têm o direito de ter. Luxo esse de apenas uns poucos na cidade. E ele era um deles. Marina ficou petrificada sem saber o que fazer. Se sorria de volta, se acenava, se ia ao encontro dele. Mas não precisou fazer nada disso, pois ele mesmo veio em sua direção e postou-se diante de sua mesa.
- Estou enterrado em trabalho hoje e essa fila não anda. Você pode fazer um favor para mim?
Tentando parecer profissional e dar orgulho ao seu amor platônico tentou responder algo inteligente, obviamente diferente de um simples sim porque responder “não” estava fora de cogitação, mas a única coisa que conseguiu fazer foi ficar vermelha ao sacudir a cabeça afirmativamente enquanto ele remexia em sua pasta.
- Você fica aqui até o fim da tarde. Poderia pagar estas faturas pra mim? Se eu ficar na fila vou desperdiçar a manhã inteira e não conseguirei cumprir meus outros compromissos.
Não é possível dizer se ela compreendeu o significado desse pedido, mas isso não importava. Ele a viu, precisou de seus favores. Isso bastaria. No fim do expediente, antes dos caixas fecharem ela falaria com a operadora, amiga sua e lhe pediria para descontar as faturas. Ganharia pontos com ele e faria o dia valer a pena.
Estendeu a mão para pegar os papeis, mas ele ao invés de entregá-los, beijou-lhe a mão com maestria antes de pôr os papeis sobre a mesa, virar-se e ir embora, peito estufado como quem conseguiu fazer um bom negócio, deixando Marina sozinha com seus pensamentos em polvorosa e seu coração quase saindo pela boca. Ele a tinha beijado, na mão é certo, mas beijou, ali na frente de todos. Qualquer um que visse a cena imaginaria que ele era um amante dedicado. O guarda que estava próximo deu-lhe uma piscadela em aprovação.
Marina saiu o mais discretamente que conseguiu e correu para o banheiro dos funcionários para se olhar no espelho. Pôde ver ainda suas bochechas vermelhas e um sorriso que teimava em permanecer em seu rosto. Só ele conseguia deixá-la agindo feito boba. “Nunca mais lavo esta mão”, pensou.
No fim do expediente veio a bomba.
- Viu só a cara do Daniel hoje? - dizia a operadora do caixa enquanto pegava as faturas que Marina lhe estendia. - Ontem deve ter sido um dia e tanto para ele. Foi buscar a namorada na rodoviária. Nunca vi homem mais cheio de si, só porque está namorando uma moça da capital.
_Que história é essa? - Marina quase não acreditava no que seus ouvidos ouviam. A tagarelice da amiga nem sempre era útil, mas quem podia culpá-la? Se tinha alguém que sabia da vida de todo mundo na cidade era ela.
- Você não sabe? Essas viagens frequentes dele para a capital é para encontrá-la. Eu soube que ontem ele a levou para conhecer a família dele. Estão até de plano em casar.
Marina não ouviu as últimas palavras e não viu qual caminho tomava. Só queria sair dali. Compreendeu que a cena da manhã só foi mágica em sua cabeça. Ah! Criaria coragem e ganharia o mundo. E só voltaria dentre de dez anos quando ele estivesse divorciado e, quando sentasse em sua calçada ela ainda estaria solteira. E bem-sucedida.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Junho de 2016