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Anchieta Alves de Santana
Uruçuí / PI

 

A noiva enrustida

 

No meu tempo de criança, vivia brincando sob as mangueiras e banhando nas correntezas das águas da vida...Da vida que se tinha lá no povoado Sangue...onde meus pais ainda vivem na lida das culturas agrícolas tradicionais. E lá, nas veredas onde eles moram, ainda se preserva paisagem natural que embeleza caminhos rústicos e saudosos e proporciona habitat para uma diversidade de pássaros que cantam e encantam nos brejos, caatingas e veredas de agreste.
          Lá, ainda resiste às intemperes do tempo e abandono do homem, a primeira e única escola do povoado. É um prédio com arquitetura demasiadamente simples, com apenas uma sala de aula e uma minúscula área de recreação. Na sala de alguns metros quadros, poucas cadeiras previamente dispostas e um quadro na parede central onde se fazia as anotações das tarefas pedagógicas. No entorno existiam algumas residências e animais que pastavam dia e noite. Uma escola na sede de uma fazenda. Foi ali que, como aluno do, hoje, Ensino Fundamental, dei os primeiros passos no universo do processo de ensino e aprendizagem formal. Ali conheci a minha primeira educadora. Era a professora Rosa Saraiva. A primeira depois da minha mãe.
          Mesmo morando a três mil metros de distância da unidade de ensino, sempre gostei daquela jornada diária de idas e vindas da escola, vivida sob o fôlego de criança por caminhos de areia tortuosos. Era um tempo em que não se falava em merenda escolar nem material didático. A nossa salvação eram as frutas colhidas no retorno da escola. Jatobá, cajá, olho-de-boi, araçá, murici, puçá...eram parte em nosso cardápio. Nossos assentos eram tamboretes e a mesa da professora era algo improvisado. Não existia vigia nem zeladora. A professora era a única funcionária da unidade de ensino.
            A sala de aula se resumia num espaço onde a professora dizia o que e como fazer. Algo do tipo: faça uma cópia bem caprichada; observem a pontuação e as palavras iniciadas com letra maiúscula; ou então, desenhe a sua casa, sem esquecer o número de cômodos. Isso sem contar com  a “redação sobre as férias” e as “lições de tabuada” –também conhecidas como “argumentos”. Ali, ao lado da professora, bem próximo dos nossos olhos, numa serena vigília, estava a “palmatória”-um sinônimo de medo, angústia, terror...enfim, uma assombração.
           Foram três anos caminhando três quilômetros todos os dias para fazer “cópias bem caprichadas”, “caligrafias”, “estudando tabuada”,  “desenhando casas”, pintando figuras mal traçadas e nada mais. Nada de criação, de pesquisa, nada de questionamentos. Dessas atividades pedagógicas, uma não alcançou o resultado esperado, a caligrafia. Os meus traçados em forma de letras ainda não merecem parabéns. Tudo acontecia sob as ordens do olhar firme da professora.  Era uma situação educativa onde tínhamos momentos, previamente determinados, para a expressão oral. Era um tempo em que não se abria espaço para nossa capacidade criadora de cada dia. Nada de produção. Nada além do recado docente.
           Daquela rotina educativa, além das lembranças, dos gestos e dos atos docentes cuidadosamente medidos, restou, sim, aprendizagem. Talvez não a ideal, mas a possível pelas mãos de uma professora leiga.
          Hoje, montado nessas lembranças de um passado marcante, percebo que é nos embates educativos, com recheios de práticas inovadoras, que pode nascer um processo de ensino e aprendizagem embasado nas relações interpessoais igualitárias. É de práticas educativas inovadoras que se espera soar o brado da libertação de um povo. E quando isso acontecer, esse brado se juntará a outros, e tantos outros, milhares...e, juntos, despertarão um canto maravilhoso e necessário denominado independência; tudo, embalado por uma melodia que tem o cheiro, a cor, o sabor e a fisionomia da cidadania. Apenas isto. 
           Ainda esperamos por esse brado educativo num tempo em que se vive sob as ordens do século XXI. Um tempo que experimenta a modernidade tecnológica e a virtualidade no seio de uma sociedade em busca de uma identidade educativa e cultural. Ainda esperamos por esse eco pedagógico...porque ainda estamos apenas esperando. A teoria ainda está sendo lapidada, remoída, revisitada, vestida de noiva, num embate ferrenho, para, numa solenidade bastante esperada, sabe-se lá quando, ela se case com a prática. E nesse evento matrimonial majestoso, quem sabe, lá estarão todas as unidades de ensino falando a mesma língua. Não dialetos distintos.
           Portanto, espera-se que, num breve espaço de tempo, a prática seja,  de fato, cara-metade da teoria. E vice-versa.  E que saíam por aí realizando sonhos e que sejam eternos apaixonados vivendo sob o mesmo teto.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Junho de 2016