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Letícia Alvarez Ucha
Porto Alegre / RS

 

Palavras no silêncio

 

Jerusa era uma moça pobre que adorava observar tudo à sua volta. O movimento das pessoas, suas expressões, o céu, os pássaros voando, o colorido das flores, tudo a encantava, mas com uma pontinha de tristeza... Não ouvia absolutamente nada. Às vezes, colocava as mãos na caixa de som para sentir a vibração do som e tentava dançar, porém não conseguia captar o ritmo.
Comunicava-se pela linguagem das Libras, pois aprendera com a patroa de sua mãe que era professora de crianças especiais. Sabia ler e escrever muitas palavras, mas com dificuldade.
Uma de suas maiores distrações era ler revistas de celebridades, sonhava com os locais, roupas das atrizes. Foi quando teve uma ideia: leu um anúncio sobre um curso de corte e costura via correspondência e resolveu fazer. Se desse certo, poderia com o dinheiro da venda dos vestidos comprar o tão sonhado aparelho auditivo. Porém, até concluir o curso, conseguir clientela, demoraria... e Jerusa não aguentava mais ver a vida como um filme de cinema mudo.
Juntou uns trocados, comprou um bilhete na rifa da igreja. Com sorte poderia receber o prêmio em dinheiro. Chegou o grande dia do sorteio! Jerusa, sentiu um frio na barriga quando viu as pessoas se aproximarem do palco. A moça responsável pelo certame, tirou do pote um papel fechado e mostrou o número! Infelizmente, não era o de Jerusa.Triste, saiu apressadamente.
Sentiu alguém puxá-la pelo braço. Era sua amiga Vanessa que não era deficiente, mas também se comunicava em libras por causa de seu avô e estava com um jornal na mão. Era um anúncio da Faculdade de Fonoaudiologia. Seriam feitos estudos com pessoas sem audição e seriam fornecidos aparelhos auditivos gratuitamente aos voluntários.
Na segunda-feira de manhã, Jerusa já estava na fila dos voluntários. Desta vez, a sorte sorriu! Ela foi selecionada para fazer parte das pessoas que fariam parte do projeto.
Algumas semanas depois, já usando o aparelho auditivo recebeu uma mensagem de Vanessa avisando que estava com suspeita de gripe H1N1 e perguntou se ela poderia ficar em seu lugar como babá da pequena Isabela, enquanto ela ia ao médico.
A mãe da criança, Julia, uma artista plástica em ascensão, confiou na escolha de Vanessa e aceitou a substituição. Jerusa ainda estranhava alguns sons e os mais estridentes lhe causavam algum mal- estar. Apesar de gostar de crianças, a moça não estava suportando os sons agudos do choro constante de Isabela. Foi quando teve uma ideia: tirou o aparelho auditivo. Colocou a criança no colo e acabou pegando no sonho.
Só que ninguém esperava que o filho da faxineira de Julia, tivesse pegado a chave da casa que ficava com sua mãe Marizethy para quando ela fosse fazer a limpeza. Ela era uma senhora honesta e trabalhadora, porém seu filho Maicon vivia em más companhias.
O rapaz entrou no apartamento e subtraiu três esculturas em bronze e prata as quais seriam apresentadas em um leilão de arte.
Jerusa e Isabela estavam em outra peça do amplo apartamento de 300m².Ainda sem o aparelho, a moça não ouviu nada e não percebeu a presença de estranho no local. A criança ainda dormia.
No final da tarde Julia retornou à casa e notou a falta das obras de arte. Foi logo, tirar satisfação com Jerusa que não conseguia ainda expressar através da fala somente por sinais. A dona da casa ficou sem entender o que estava acontecendo. Ligou para sua babá Vanessa que explicou que a amiga era surda, mas estava aprendendo a falar.
Julia explodiu furiosa! Como tinham ocultado um detalhe tão importante que a babá só se comunicava através de sinais! Vanessa, pediu calma e garantiu a honestidade da amiga e que tudo seria esclarecido.
Como o edifício era antigo não havia câmeras de segurança. O porteiro seu Alaor sempre ausente afirmou não ter visto ninguém diferente no prédio.
Julia deixou Jerusa ir embora mas com uma condição:  pegou um papel e escreveu:
“Em 48 horas você deverá trazer as obras de arte de volta, caso contrário irei à polícia.”
 Jerusa foi embora quase chorando. Caminhava apressadamente sem saber o que fazer. Passou por uma lancheria, sentou em uma das mesas e pediu um sanduíche com guaraná. Estava tão atordoada que não colocou novamente o aparelho auditivo. Deixou-o na bolsa. Aqueles sons altos e sem significado a deixariam mais agitada ainda.
Perto de sua mesa, sentaram-se três rapazes bonitos. Jerusa começou a prestar a atenção neles. Um deles era Maicon que estava com uma mochila bem cheia. Jerusa começou a observá-los: mais que isso: começou a LER os lábios deles.
Ao perceber o teor da conversa, engasgou-se. Os três nem perceberam a reação da humilde Jerusa. Os três estavam comentando sobre como fariam para vender as obras de arte subtraídas da casa de Julia.
Jerusa abriu sua bolsa, pegou uma caneta e anotou o endereço do local “da venda”. Passados minutos os três saíram sem notar que haviam sido observados.
Procurou sua amiga Vanessa e contou tudo. Esta feliz por não estar doente e pela solução encontrada, comprometeu-se a ajudar Jerusa.
Contou à Júlia o que a amiga vira e forneceu o endereço da “venda”. Meio descrente, esta comenta a situação com o marido que é delegado. Ele acredita na moça e comparece com sua equipe ao local e hora. Ocorreu o flagrante esperado: as peças de arte foram encontradas e a gangue presa.

 

 
 
Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro" - Junho de 2016